Doutrina liberal é usada como argumento em ação judicial contra Heineken

Qual a função de uma empresa? A resposta é menos óbvia do que parece.

Em primeiro lugar, obviamente, é produzir, gerar renda, criar empregos e se possível dar lucro, ao menos numa sociedade de economia de mercado como a brasileira.

Mas também ter responsabilidade social e respeitar preceitos ambientais e éticos, segundo conceitos que têm se fortalecido nos últimos anos.

Liberais torcem o nariz para esta segunda parte. Não há nada mais socialmente responsável para uma empresa do que dar o maior lucro possível, dizem. Há até um nome para isso: Doutrina Friedman.

A referência é ao americano Milton Friedman (1912-2006), um dos mais influentes economistas do século 20, prócer da Escola de Chicago, meca do liberalismo.

Em um famoso artigo que publicou no jornal americano The New York Times em setembro de 1970, Friedman pregou que empresas têm de ter como única preocupação beneficiar seus acionistas. A partir disso, eles próprios podem escolher praticar ações socialmente responsáveis, em vez de serem obrigados a seguir diretrizes pré-estabelecidas.

Em outras palavras, escreveu Friedman, o planejamento central é intrinsicamente falho, sujeito a vieses e contraproducente. No longo prazo, prejudica a própria empresa e portanto a sociedade de forma geral.

Longe de ser uma discussão puramente acadêmica ou filosófica, a Doutrina Friedman vem produzindo embates no mundo real nos últimos 50 anos. Um exemplo acontece no Brasil, numa disputa jurídica que envolve, veja só, a distribuição de bebidas.

O conflito se dá entre a cervejaria Heineken e a Avante, uma de suas distribuidoras, que atua em Teixeira de Freitas (BA).

Há 24 anos, a Avante tem contrato de distribuição de bebidas na região, firmado primeiro com a Schincariol, que posteriormente foi comprada pela Kirin e depois pela Heineken.

Quando a Heineken adquiriu a Kirin, em 2017, comprometeu-se perante o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) a manter os 180 distribuidores pré-existentes, inclusive a Avante. Isso, no entanto, criou um problema com a Coca-Cola, com quem a Heineken já tinha seu próprio acordo de distribuição de produtos.

Gradualmente, a Heineken passou então a não renovar os contratos com os distribuidores anteriores que herdou da Kirin, em geral empresas menores, de porte regional, caso da Avante.

A distribuidora entrou na Justiça, alegando que terá prejuízos decorrentes de uma expectativa de receita frustrada, e aí é que entra a Doutrina Friedman na jogada.

Em sua petição judicial para tentar preservar os direitos de seu cliente, o advogado da Avante, Leonardo Corrêa, apontou uma contradição entre a prática da Heineken, típica de um certo capitalismo selvagem, e seu discurso de que é uma empresa com responsabilidade social.

“Quando uma empresa se apresenta para a sociedade com seu código de conduta e suas obrigações sociais, ela não pode usar a Doutrina Friedman, em uma demanda como a presente”, afirma o advogado.

Corrêa, que é ele próprio um liberal, diz que não vê problema com a Doutrina em si. Mas não é possível querer ser as duas coisas ao mesmo tempo, argumenta.

A Heineken, lembra o advogado, se diz adepta das práticas ESG, conceito em voga no mundo corporativo. A sigla, cujo significado é “environmental, social and governance” (ambiental, social e governança), resume compromissos socialmente responsáveis de empresas e são a antítese da Doutrina Friedman.

“Ou a empresa é firme e defende a Doutrina Friedman, com todas as consequências que essa escolha implica; ou aceita que possui uma função social. Ao escolher a segunda hipótese, contudo, não dá para buscar salvação na primeira”, afirma o advogado.

Entre os prejuízos mencionados pela Avante está o fato de ter contraído dívidas para se adequar a procedimentos exigidos pela própria Heineken.

“Toda a clientela da região e os pontos de venda foram conquistados pela Avante. Agora, a Heineken decidiu não renovar o contrato, apesar de a Avante estar super bem avaliada nos programas de performance. Por que isso? É uma estratégia perversa”, afirma o advogado.

A distribuidora pede que o contrato com a Heineken seja mantido ao menos até que a empresa recupere o investimento feito, além de indenização pelo fato de ter construído ao longo dos anos uma rede de relacionamento com comerciantes e promotores de eventos locais.

Em liminar, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve o contrato vigente até que uma decisão de mérito seja julgada, além de ter proibido que a Heineken distribua seus produtos usando outras empresas na área de atuação da Avante.

Corrêa coordena a Rede Liberal, um grupo que reúne adeptos do liberalismo no Brasil, e até por isso está familiarizado com a Doutrina Friedman. Ele afirma que teve a ideia de usar esse conceito em sua argumentação porque a contradição entre discurso e prática da Heineken era muito evidente.

O advogado se diz confiante de que sua tese será acolhida pela Justiça, o que seria algo sem precedentes. Nesse caso, a doutrina criada pelo papa do liberalismo há meio século poderá estar cada vez mais presente nos tribunais brasileiros.

Outro lado

Por meio de sua assessoria, a Heineken contestou os argumentos apresentados pela Avante. Disse que a distribuidora foi notificada sobre o encerramento do contrato com oito meses de antecedência.

“Em respeito à parceria de longa data com a distribuidora, o grupo Heineken cumpriu integralmente com os termos do contrato até a data final de sua vigência (2 de agosto de 2021), notificou com oito meses de antecedência a opção pela não renovação e ainda ofereceu a opção de participar de um programa de apoio para uma transição planejada e segura durante os últimos seis meses de contrato”, afirmou.

A empresa afirmou ainda que “o respeito pela sociedade e pelo planeta é um valor inegociável para o grupo Heineken, que atua com transparência em todas as suas relações comerciais, inclusive no caso envolvendo a distribuidora Avante”.

Por fim, a Heineken afirma não ver contradição entre sua defesa da responsabilidade social e a decisão de não renovar o contrato.

“A companhia não vê qualquer relação entre suas práticas de sustentabilidade e responsabilidade social e a decisão pela não renovação do contrato com a Avante, que é um direito de ambas as partes”, afirmou.