Do mal súbito de jogador da Dinamarca ao cecê, é tudo ‘culpa’ do neoliberalismo, mostra site

Fábio Zanini

A conta de luz vai aumentar? Culpa do neoliberalismo. Sair do armário da maneira “errada”, não aceita pelos movimentos LGBT, também.

Até o mal súbito sofrido pelo jogador dinamarquês Christian Eriksen na Eurocopa foi causado porque “o neoliberalismo não ajuda, é muito estresse para todos os lados”.

Poucas palavras foram tão amaldiçoadas nas últimas décadas como “neoliberal” ou “neoliberalismo”, e uma dupla que assumidamente defende essa linha de pensamento econômico resolveu levar os exageros da coisa toda na brincadeira.

O cientista social Fernando Moreno, 34, e o mestrando em economia Lucas Favaro, 26, criaram o perfil de Twitter “Museu de Culpas do Neoliberalismo”, em que caçam nas redes sociais os exemplos mais absurdos de demonização do termo, também exibidos numa seção do site neoliberais.com.

O neoliberalismo é responsável, por exemplo…

…pelas tretas no Big Brother:

…por praticamente todas as tendências políticas hoje no Brasil, do bolsonarismo ao petismo:

… e até pelos odores do corpo:

(Esta última imagem mostra, aliás, que o fenômeno de culpar o neoliberalismo por tudo não se restringe ao Brasil).

“A gente certamente ainda não fez contato com os óvnis por culpa do neoliberalismo”, ironiza Moreno.

Já Favaro tem uma história mais triste para contar. “Dei match com uma moça num site de relacionamento, e eu disse que contribuía com uma página neoliberal. Daí ela me perguntou se eu era terraplanista também”, relata.

O flerte acabou indo por água abaixo (dessa vez, por culpa do neoliberalismo mesmo).

Na sua origem, o neoliberalismo foi usado para descrever o renascimento de ideias liberais nos EUA e na Europa a partir dos anos 1970, após o fim de um ciclo econômico iniciado no pós-guerra em que foram criados os Estados de bem-estar social.

Ideias de Estado mínimo e liberdade de capitais, que haviam feito sucesso no começo do século 20, ressurgiram com força, sob a liderança de uma nova safra de economistas, sendo o mais famoso deles Milton Friedman, da Escola de Chicago.

No mundo político, seus principais expoentes foram o presidente dos EUA, Ronald Reagan, e a primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher.

A coisa começou a ficar feia para os neoliberais a partir da década de 1990, quando governos em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil, passaram a promover privatizações, reformas do Estado e a flexibilização de direitos. No Brasil, esse movimento foi encampado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

A reação a essas reformas, liderada por movimentos sociais e partidos de esquerda, ressuscitou o termo “neoliberalismo” como um slogan, mas dessa vez de caráter malévolo. A estratégia funcionou muito bem. O próprio FHC, sociólogo de tradição de esquerda, nunca escondeu o incômodo em ser associado a esta palavra.

Para Moreno, não há nada mais equivocado do que associar “neoliberalismo” a posições extremadas, como tenta fazer a esquerda. “Neoliberalismo é respeitar o livre mercado, que é gerador de prosperidade. O neoliberal busca uma solução de centro”, afirma.

Segundo ele, princípios neoliberais são o controle da inflação, o respeito às contas públicas, a eficiência da máquina pública e a criação de uma rede de proteção aos mais pobres, como o Bolsa Família.

Favaro diz que a ideia de fazer a página foi justamente debochar de como neoliberalismo virou um xingamento vago, que pode ser usado para qualquer coisa. Os amigos recebem sugestões de memes de vários colaboradores. Um dos mais assíduos é o economista Leo Monasterio.

“Virou uma válvula de escape, uma estampa para dizer que a pessoa é malvada, até fascista. Como se houvesse uma grande conspiração de capitalistas por trás de tudo”, afirma.

Ele vê paralelos com o uso que a direita atualmente no poder, especialmente a mais associada ao filósofo Olavo de Carvalho, faz de termos como “globalismo”.

Até por isso, dizem ambos, o neoliberalismo que defendem não tem nada a ver com as ideias do ministro Paulo Guedes (Economia), e muito menos do presidente Jair Bolsonaro. “A gente é 100% fora Bolsonaro. Ele não tem nada dos valores neoliberais”, diz Moreno.

Mais recentemente, o neoliberalismo passou a ser criticado também por setores da direita ultraliberal, especialmente a que é identificada com a chamada Escola Austríaca.

Para os “austríacos”, neoliberais são liberais meia boca, por ressaltarem o papel do Estado na normatização das atividades econômicas, com a defesa de instituições como bancos centrais e agências reguladoras.

Ou seja, ser neoliberal é sofrer ataques de todos os lados, mas isso não desanima os dois colegas na tentativa de recuperar o termo.

“Em outros momentos históricos, isso aconteceu com outras palavras. O termo sufragete, por exemplo, era extremamente pejorativo para descrever as mulheres que defendiam o voto feminino no começo do século 20. Hoje, as sufragetes são vistas com admiração”, afirma Moreno.

O caminho, contudo, ainda é longo para que “neoliberal” deixe de ser um palavrão. “A gente sabe que o termo ainda está muito longe de ser reabilitado”, afirma Favaro.