Não coloquem a defesa da intervenção na nossa conta, diz coordenador da Marcha da Família
Este blog publica aqui artigo de Alex Canuto, coordenador da Marcha da Família Cristã Pela Liberdade em São Paulo, que já teve duas manifestações de rua, em abril e maio.
Ele rebate as acusações de que os eventos defendem algo parecido a uma intervenção militar no Brasil.
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Por que a Marcha da Família não pede intervenção militar
Por Alex Canuto*
A Marcha da Família Cristã pela Liberdade de 2021 é uma releitura da marcha de 1964, que não pediu intervenção militar. Não houve faixas com dizeres nesse sentido, nem legitimando 21 anos de governo militar. Era apenas um protesto contra as políticas públicas comunistas de João Goulart, e pedia sobretudo a manutenção de liberdades individuais que não existiam nas ditaduras do bloco soviético.
Em 2021, a posição oficial unânime de todos os organizadores da marcha é contrária à intervenção. Pequenos atos paralelos com esta bandeira estão esvaziados. Alguns intervencionistas tentam se infiltrar na Marcha da Família e capturar a pauta, mas sem sucesso.
Os gritos de liberdade nas marchas da família de 11/4 e 15/5 buscam agora garantir coisas ainda mais básicas, como direito de ir e vir, de trabalhar, ir a cultos e decidir sobre a própria saúde sem interferência de governos.
O estopim da marcha de 64 foi o comício da Central do Brasil, em 13 março daquele ano, quando o presidente disse que o Santo Rosário não poderia ser erguido contra a reforma agrária confiscatória.
Ou seja, numa tacada só mexeu com as bancadas do boi e da Bíblia. A resposta veio dia 19, na marcha em São Paulo. Até então, os militares estavam apenas observando, como fazem hoje.
Se Jango tivesse parado ali, talvez tivesse completado o mandato. Mas no dia 30 de março ele mexeu com a bancada da bala ao apoiar o evento de sargentos no Automóvel Clube do Rio, em mais um gesto de fomento a quebra da hierarquia e disciplina militares, primeiro passo para um golpe comunista.
Ou seja, enquanto o descontentamento era só da turma do boi e da Bíblia, nada aconteceu. A casa de João Goulart só caiu no dia seguinte à provocação contra a turma da bala. Não foi a Marcha da Família que ensejou o 31 de março, e sim o fomento à quebra de hierarquia militar ocorrido no dia 30.
Claro que as famílias de 64 gostaram da queda de Jango, já que essa foi a solução encontrada para barrar o comunismo. Principalmente porque na sequencia o general Castello Branco foi eleito apenas para um mandato tampão, completando os 19 meses restantes até as eleições de 1965.
E foi então que aconteceu o verdadeiro golpe. O governo tampão não tinha legitimidade das ruas para adiar eleições, extinguir voto direto, impor bipartidarismo, editar AI-5 e ficar 21 anos no poder. As famílias de 64 não pediram isso.
A maior prova de que não foram responsáveis pelo golpe de 65 e pelo que veio depois é que os militares fizeram tudo que entendiam necessário sem precisar prestar contas às lideranças de 64, o que levou Carlos Lacerda a criar a frente ampla com Juscelino Kubitschek e Jango, pedindo democracia.
Foi aí que os militares começaram a perder a moral e o respeito enquanto moderadores e garantidores da lei e da ordem. Na verdade, o Poder Moderador sempre existiu de fato no Brasil. Ele esteve escrito abertamente apenas na Constituição do Império, de 1824.
Mas no momento em que o Exército impõe a República, ele toma esse papel das mãos do imperador e passa a exercê-lo de fato, mesmo sem escrevê-lo na lei. Tanto que em todas as crises da República, de 1889 a 1964, o Exército sempre entrava em cena, punha ordem na casa e garantia o poder temporal a quem de direito. Enquanto ele atuava exclusivamente como moderador, tinha legitimidade social suficiente para agir.
Mas a coisa começou a mudar em 1965, quando os militares acharam que dava para ficar no governo acumulando o Poder Moderador com a gestão pública e a politiquinha cotidiana, vestindo ao mesmo tempo o uniforme de árbitro e o de um dos times em campo.
A essência do Poder Moderador é ser um poder de Estado, perene, estável, sóbrio, acima das disputazinhas políticas efêmeras, que age silenciosamente nos bastidores, atrás dos holofotes, e não se envolve na parte mais circense da política, em que personagens menores protagonizam briguinhas para deleite da plateia.
Quando os militares passam para o outro lado dos holofotes, eles se igualam aos moderados, e assim perdem a legitimidade de ser moderadores.
Se os militares tivessem garantido as eleições de 1965 e entregue o poder ao sucessor, talvez o apoio que teriam hoje pra intervir na política seria bem maior que 21% (Inst. Orbis, 11/6/20).
Mas uma grande parte da sociedade não confia que essa intervenção seria temporária. E muita gente que não é de esquerda não necessariamente autoriza os militares a repetirem 1965, quando deram um golpe nas famílias de 1964.
Autorizamos sim o presidente a fazer o necessário para implementar o seu plano de governo, legitimado nas urnas por 55% dos brasileiros. A solução de 2021 não será igual à de 1964.
Com a redemocratização, o STF ensaiou assumir essa função de moderador da vida política brasileira e da gestão pública, mas está incorrendo nos mesmos erros dos militares dos anos 60. Já perdeu o respeito há muito tempo, pois age como partido político, vestindo uniforme de um dos times, ao invés do de árbitro.
Por tudo isso, a marcha de 2021 não quer ditadura, seja de farda, de toga ou de calça apertada. Se a marcha de 1964 não deixou isso claro, a de 2021 está deixando: pedimos democracia e respeito à vontade da maioria do povo, que é conservadora.
Assim sendo, não venham inventar qualquer tipo de ditadura e depois colocar na nossa conta, alegando que foram as famílias que pediram, ou que a marcha era um ato antidemocrático contra o qual foi preciso rasgar a Constituição.
A democracia somos nós, o povo na rua, e o que o povo está pedindo é liberdade de ir e vir, de decidir sobre sua própria vida e sua saúde, liberdade de trabalhar, de ir à igreja, e direito de votar pra presidente com voto impresso e auditável. Apenas isso.
Alex Canuto é gestor público federal, advogado, jornalista, mestre em Public Policy pela Hertie School of Governance de Berlim e coordenador da Marcha da Família Cristã Pela Liberdade em São Paulo