Nova produção da Brasil Paralelo faz alerta vermelho sobre a Argentina
Popular durante a Guerra Fria, a “teoria dos dominós”, segundo a qual países que se tornavam comunistas ameaçavam seus vizinhos com o mesmo destino, foi ressuscitada pela direita brasileira. Desta vez, para retratar um suposto perigo vindo do sul.
A imagem de peças do jogo tombando em sequência está no início da trilogia “A Queda Argentina”, recém-lançada pela produtora de vídeos conservadora Brasil Paralelo.
“A Argentina faliu. Quebrou igual a Venezuela. A pergunta que fica no ar é: estamos livres de sermos a próxima peça?”, diz o narrador. Lançados há duas semanas, os três episódios da série acumulavam perto de 1,2 milhão de visualizações no YouTube até sexta-feira (12).
No governo de Jair Bolsonaro, a Brasil Paralelo tem se destacado como principal produtora de vídeos e documentários com viés conservador.
Já houve produções sobre o golpe de 1964, a pandemia e o Supremo Tribunal Federal, entre outras. Sempre alinhadas ao pensamento médio bolsonarista, embora seus sócios, um trio de jovens gaúchos hoje instalado num moderno prédio na avenida Paulista, rejeite o rótulo. A empresa diz financiar-se apenas com assinaturas de membros, sem recurso a dinheiro público ou leis de fomento.
As produções em geral têm duas características: esmero técnico, com boa qualidade de imagem, trilha de sonora e roteiro; e o viés conservador da narrativa, uma espécie de revisionismo carregado de tintas direitistas.
No caso do documentário sobre a Argentina, o esforço é para mostrar como uma sociedade próspera do início do século 20 foi à falência em razão de sua fragilidade institucional, num processo em que a influência comunista teria tido um papel preponderante.
“A Europa da América Latina. Assim a Argentina era vista por todos os países. Sinônimo de luxo, alta cultura e moeda forte”, diz o documentário logo em seu início, enquanto são mostradas preciosas imagens de época sobre o dia a dia da alta sociedade de Buenos Aires, com seus teatros requintados e corridas de cavalos.
Em meados do século 20, ainda segundo o filme, a derrocada já se fazia sentir, e a Argentina se mostrava uma “nação que desceu das alturas da prosperidade e se vê à beira do abismo”.
O que houve para que isso acontecesse? A principal explicação, diz o documentário, foi a importação de ideias comunistas da Europa e a ascensão do populismo de esquerda representado por Juan Domingo Perón, ainda uma figura dominante na política do país vizinho.
“Durante os discursos da [vice-presidente] Cristina Kirchner, o pessoal ainda canta a marcha peronista”, disse ao blog Lucas Ferrugem, diretor do documentário.
Perón, como se sabe, era um camaleão político, numa trajetória que espelhou muito a de Getulio Vargas por aqui. Chegou ao poder numa aliança com o operariado, foi deposto e retornou perseguindo movimentos de esquerda. Mas ainda resiste como uma enorme referência para os setores progressistas argentinos.
A semelhança de eventos históricos entre os dois países, afirma Ferrugem, é o que liga o alerta por aqui.
“Os paralelos da Argentina com o Brasil são bem claros. Tivemos uma independência bonita, depois o Perón se assemelha a um Getulio Vargas. Nos dois países houve muita polarização política, com a chegada de ideias de esquerda, usadas como desculpa que os militares deram para tomar o poder”, diz o diretor.
No século 21, a sincronia entre os países continua. “A família Kirchner [Nestor e Cristina] vira aliada do Foro de São Paulo, como o PT. E daí houve um caminho mais à direita: no caso deles o Mauricio Macri, eleito em 2015, e no nosso o Jair Bolsonaro, em 2018. É como se a Argentina estivesse alguns anos na frente”, declara Ferrugem.
O medo dos conservadores, claro, é o próximo passo dessa história comum. Em 2019, a esquerda, que parecia derrotada, voltou ao poder na Argentina com Alberto Fernández, após o desgaste da Presidência de Macri. “A esquerda argentina compôs uma base de poder muito sólida, como se fosse uma fusão de PT e PMDB”, diz Ferrugem.
Em 2022, seria a vez do retorno de Luiz Inácio Lula da Silva, agora que seus direitos políticos foram restabelecidos? Alguns sinais, para a base conservadora, são preocupantes, e não apenas na política partidária.
A direita daqui vê um momento favorável ao campo progressista no país vizinho. Causou muita impressão no conservadorismo brasileiro a aprovação, no final do ano passado, da nova lei do aborto, facilitando muito as possibilidades de interrupção da gravidez.
Não é por outro motivo que o documentário é repleto de cenas de multidões de verde, cor escolhida pelos manifestantes pró-aborto, em frente ao Congresso argentino. “Viralizou no fim do ano a questão da legalização do aborto, isso circulou como uma pauta muito negativa por aqui”, declara o diretor.
Esta nova legislação é vista pela direita brasileira como mais um capítulo nessa trajetória de décadas de decadência moral e institucional do país vizinho.
Ou seja, a “teoria dos dominós”, que antigamente se resumia ao medo de que o Brasil se tornasse uma nova Cuba, ou uma república sindicalista, agora adquire outros contornos. Para a direita brasileira, uma onda vermelha sopra do sul, mais forte que as frentes frias que a Patagônia manda para cá.