Opinião: Interesse em lucrar com vacina contra Covid não afeta solidariedade social

O debate sobre a compra de vacinas contra a Covid-19 pelo setor privado tornou-se um dos mais acalorados da pandemia.

Opositores dessa possibilidade argumentam que o foco deve ser na obtenção do maior número de imunizantes possível pelo SUS, por duas razões: justiça social e melhor coordenação de todo o processo de aplicação das doses.

Já os defensores da presença da iniciativa privada também apontam duas razões. Primeiro, há o argumento liberal de que não se pode impedir um indivíduo de buscar proteção, como já acontece, aliás, com diversos imunizantes.

Segundo, por uma questão de complementaridade: a compra de doses por empresas aliviaria o orçamento do SUS e contribuiria para que se atingisse mais rápido a imunidade coletiva que derrotaria a doença.

Liberal convicto, admirador de ícones como Thomas Sowell e Friedrich Hayek, o professor de ciência política Antonio Oliveira, da Universidade Federal da Bahia, inclina-se pela defesa da participação do setor privado na vacinação.

Publico abaixo um artigo com sua opinião sobre o tema, que não necessariamente é a mesma deste blog.

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A tática privada favorece a estratégia coletiva

Por Antonio Oliveira

A pesquisadora Ethel Maciel foi certeira e econômica: vacina não é remédio, é uma estratégia coletiva. Essa verdade elementar veio a público no mesmo momento em que a aquisição de vacinas pela iniciativa privada entrou no debate nacional.

Estratégia coletiva e vacinação particular foram relacionadas entre si, e parte da opinião pública manifestou-se contra a venda do imunizante. A oposição ao comércio da vacina vem dos que enxergam nisso um privilégio e dos que avaliam essa ação privada como irrelevante para a estratégia coletiva.

Travar esse debate no campo moral não auxilia muito os opositores. Se se adota o princípio segundo o qual “todas as pessoas importam, e importam igualmente”, impedir alguém de ser vacinado porque outra pessoa não pode pagar pelo produto talvez não atenda ao igualitarismo baseado em direitos.

Tratar todos e cada um com consideração e respeito implica não reduzir deliberadamente suas opções de imunização, porque o direito de ser tratado com consideração e respeito é individual e incondicional, segundo aquele igualitarismo.

Se se opta pelo utilitarismo, não há motivo para a interdição. Na situação concreta sob exame, não há como o acesso particular à vacina provocar danos. Pelo contrário, ele pode promover o interesse comum, se o poder público fizer a parte dele. A imunidade de rebanho não é um ente a ser encarnado pelo SUS, é a simples soma de vacinações individuais.

O número de pessoas que podem pagar pela vacina está aquém do exigido para a imunidade coletiva, porém a tática particular contribui para a estratégia coletiva. Ela em si não afeta negativamente o processo geral de imunização.

Só vejo uma razão para impedir o mercado de fornecer o imunizante: se for demonstrado, por meio de dados que possam ser checados, que sua entrada na disputa pelo produto prejudicaria a imunização coletiva, o grande prêmio esperado por ricos e pobres.

Essa demonstração demanda que sejam fornecidos dados indicando que a compra via mercado pode ter impacto negativo na aquisição do produto pelo Estado, o que impediria a sociedade de alcançar a imunidade de rebanho.

Mas esse argumento tem de apresentar também convincentes evidências de que, se a iniciativa privada nacional sair da concorrência, o poder público terá garantida a fatia que seria comprada pelos empresários.

Isto é, tem de haver fortes indícios de que a parcela que o mercado brasileiro foi proibido de comprar não tem como ser abocanhada pelos Estados e mercados estrangeiros, que competem por essa escassíssima mercadoria.

Em suma, tem de ser mostrado que a entrada do mercado nacional na competição pela vacina reduziria a quantidade total de doses disponíveis para os brasileiros.

A preferência deve ser do Estado quando houver incompatibilidade entre sua ação e a privada, porque é ele quem tem mais condições de comprar a quantidade necessária de vacinas para atingir a imunidade de rebanho.

Logo, é ele quem tem mais chances de assegurar a pobres e ricos o retorno mais rápido à normalidade. Porém, no assunto em pauta, a incompatibilidade entre a ação pública e a particular parece não existir.

No Brasil, o Estado tem dinheiro para comprar 420 milhões de doses e dispõe de uma estrutura organizacional para executar a vacinação em massa. Isso é o que importa.

A solidariedade social (a garantia da vacina para quem não pode pagar) e a imunidade de rebanho estarão asseguradas se o dinheiro público fornecer a vacina para quem quiser tomá-la, e não se se impedir o dinheiro privado de vendê-la.

O interesse em lucrar com o imunizante não afetará minimamente os fatos indicados e, portanto, não maculará a solidariedade social e o bem comum.

Antonio Oliveira é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Baia (UFBA)

asoufba@uol.com.br