Artigo: Uma resposta a Atila Iamarino

Publico aqui artigo do diplomata Gustavo Maultasch, ligado ao Instituto Mises Brasil, em resposta a coluna do biólogo Atila Iamarino publicada na Folha na última terça-feira (12).

A húbris de Atila

Por Gustavo Maultasch 

Chamem-me sonhador, lírico ou masoquista, mas confesso que foi com paz e serenidade que li “Autoritarismo necessário”, coluna mais recente de Atila Iamarino.

Na ausência de precaução política e de espírito democrático, é preciso ao menos reconhecer-lhe a sinceridade: há quanto tempo não ouvíamos alguém dizer assim, tão abertamente, que suas propostas de silenciar opiniões e de vacinar compulsoriamente são autoritárias?

Se entendi bem a lógica, o argumento é o seguinte: há muita propaganda falsa, muita divulgação antivacina. Com isso, mesmo que “cientistas, profissionais de saúde e divulgadores científicos” façam um “estardalhaço”, eles “não corrigirão isso”.

E assim, “se a informação falsa sobre vacinas não for barrada na imprensa e em redes sociais, só uma vacinação compulsória chegaria em proporções suficientes. Um apelo autoritário, de uma forma ou de outra”, diz Atila.

Ou seja: se você é suscetível a opiniões que considero “erradas”, se você não entende o “certo”, de uma forma ou de outra eu vou te obrigar a entender, camarada.

Esse é, infelizmente, um argumento que tem ganhado curso na classe “vanguardista” do país, aquela formada por escolarizados urbanos que imaginam conhecer a rota cênica do “progresso” da História e, assim, arrogam-se a missão de decidir o que pode ser pensado e dito: é preciso regular “fake news”! Não se pode tolerar a intolerância! (E quem define o que é “intolerância”, claro, são eles). E com isso, nessa mistura de prepotência e paternalismo, tem-se formado, nessa classe vanguardista, uma libido política inquisitorial.

Em seu livro “Kindly Inquisitors: The New Attacks on Free Thought”, Jonathan Rauch alerta para o fato de que, com disfarces humanitários, a ideia de regulação da liberdade de expressão tem recuperado respeitabilidade.

Segundo ele, “o velho princípio da Inquisição tem sido reavivado: as pessoas que têm opiniões erradas ou ofensivas devem ser punidas pelo bem da sociedade. Se elas não puderem ser colocadas na prisão, então elas devem perder seus empregos, ser submetidas a campanhas organizadas de vilificação, forçadas a se desculpar, pressionadas a se retratar” (p. 6).

Trata-se de um fundamentalismo intelectual secular, uma cruzada que se crê estandarte do “iluminismo”, da “razão”, da “ciência” e que se incumbiu, unilateralmente, de impor sua sabedoria às massas que crê ignorantes e dependentes.

É evidente que o público nem sempre pensará ou afirmará aquilo que outros desejam; mas ora, seja bem-vindo à democracia. Ela é cacofônica e por vezes caótica, mas é um caos infinitamente mais bonito e seguro do que o silêncio sintético de uma sociedade amedrontada por polícias do pensamento.

Não adianta buscar a perfeição utópica ou a solução última de problemas: somos imperfeitos, tribais, meio impetuosos, todos tentando fazer o nosso melhor para nos equilibrarmos entre dores e felicidades num planeta inóspito. Muitos somos teimosos também e não concordamos automaticamente com os demais.

Paciência; somente a livre-manifestação desimpedida da opinião é compatível com a democracia. Seres humanos são um fim em si mesmos, e não instrumentos para a realização de ideais alheios. Opiniões que julgarmos erradas devem ser confrontadas com outras opiniões, e não com tentativas de regulação e silenciamento.

Investir contra a liberdade de expressão contribui, ainda, para agravar os riscos de tirania; qualquer regulação da manifestação de opiniões será, cedo ou tarde, utilizada pelo Estado para evitar contestação e para preservar o seu poder.

Se vivemos em uma época em que se fala tanto de morte da democracia, em que se teme tanto pelo destino das nossas instituições, parece-me pouquíssimo auspicioso (para dizer o mínimo) dotar o governo de mais poder para intervir em nossas vidas.

A libido inquisitorial é prejudicial à própria atividade de divulgação da ciência. A crise de autoridade de que padece a ciência (e outras instituições) agrava-se, sobretudo, pela incapacidade de suas lideranças em entender que o paradigma de legitimidade anterior – baseada no nós-falamos-e-vocês-aceitam-em-silêncio – simplesmente esgotou-se em meio à horizontalização da comunicação.

Como afirma Martin Gurri em “The Revolt of the Public”, alterou-se a balança de poder entre hierarquia e obediência, governante e governado, elite e público (p. 79).

Em um momento como esse, reforçar elementos de tutela hierárquica apenas fará despertar mais desconfiança na ciência; se vocês estão tão certos, por que o silenciamento? O único caminho possível é mais liberdade, mais confronto de ideias, mais busca por livre-convencimento.

Por fim, deixo claro que não sou ludita nem antivacina; pelo contrário, tomo todas. Minha crítica refere-se apenas à húbris vanguardista de pensar-se a detentora, e a reguladora, da opinião permitida.

Gustavo Maultasch é diplomata, doutor em administração pública e especialista do Instituto Mises Brasil.