Após 4 anos, Trump deixa legado de ousadia na política externa, diz professor
O estilo caótico de administrar, a tolerância a “fatos alternativos”, a desastrosa condução da pandemia e, para coroar, a recusa infantil em aceitar a derrota eleitoral não ajudarão Donald Trump a ser visto favoravelmente pelos historiadores do futuro.
Mas se há uma área em que a chance de ele ser encarado como um presidente que deixa algum legado é a política externa. Goste-se ou não do personagem, Trump sai da Casa Branca (talvez arrastado…) com uma lista de realizações que deverão ter impacto concreto no cenário internacional nos próximos anos.
“Ele foi realmente ousado em várias ações”, diz Lucas Azambuja, sociólogo, professor do Ibmec de Belo Horizonte e especialista em relações internacionais.
O Oriente Médio é o palco principal onde essa “doutrina Trump” pôde ser vista. Em 2020, no espaço de apenas alguns meses, ele mediou quatro acordos de paz entre países árabes e Israel: com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos.
Como comparação, nos 41 anos anteriores, houve apenas dois: com Egito, em 1979, e Jordânia, em 1994. Há rumores de que Trump quer fechar seu mandato com mais um, que provocaria um verdadeiro abalo sísmico na região: um tratado entre Israel e Arábia Saudita.
Para Azambuja, Trump decidiu dar uma chacoalhada numa estratégia que os EUA passaram décadas buscando no Oriente Médio, mas que não vinha fazendo efeito.
“Trump, ao costurar esses acordos, adotou como estratégia isolar os palestinos. Quando houver uma nova negociação com Israel, os palestinos não terão tantos apoios”, diz.
Ou seja, poderão ser convencidos a fechar um acordo com o Estado judeu, ainda mais se houver a promessa de um generoso pacote de assistência financeira por parte dos EUA.
De fato, os palestinos, que há anos tentam ter um Estado reconhecido em partes da Cisjordânia, faixa de Gaza e Jerusalém, foram os primeiros a reclamar destes acordos. Cada país árabe que se acerta com Israel é um potencial aliado a menos na causa.
É bom lembrar que também houve muita reclamação palestina nos dois acordos anteriores, que, aliás, foram intermediados por presidentes democratas, Jimmy Carter e Bill Clinton.
“É muito cedo para ter uma avaliação se essa estratégia vai funcionar no Oriente Médio. Mas sem dúvida foi uma estratégia original”, afirma o professor.
Em todos esses acordos, um componente que sempre foi obrigatório ficou de lado: o multilateralismo. Nenhum destes tratados foi obtido ao fim de grandiosas reuniões de cúpula, com a presença de parceiros internacionais ou entidades como a ONU, como costumava acontecer.
Isso, segundo Azambuja, foi uma característica importante da diplomacia nos quatro anos de Trump. “Desde o início, ele destacou a necessidade de os EUA terem uma independência maior com relação aos órgãos multilaterais, ao globalismo, às burocracias internacionais. Ou seja, de o país voltar a ter um protagonismo que perdeu seguindo diretrizes desses órgãos”, afirma.
Essa prática se manifestou também em outro eixo importante da política externa americana, a relação com a China. Ela extrapolou, diz Azambuja, o campo comercial.
“A disputa com a China estava apenas no campo econômico, de renegociar regras comerciais, trazer empresas de volta para os EUA”, afirma. Trump, ao adotar uma atitude de confronto, acabou ampliando o embate para a questão dos valores e do sistema político.
“O mundo corre riscos com uma China hegemônica. A China é uma ditadura muito feroz nos seus processos de controle e pressão. Numa democracia, você tem mecanismos de equilíbrio do próprio processo democrático, mas numa ditadura isso não existe”, diz o professor.
Ao final do mandato do republicano, a pergunta inevitável é: qual seria o tratamento dispensado a Barack Obama, por exemplo, se ele fechasse quatro acordos de paz no Oriente Médio, redefinisse a relação com a China e, de quebra, fizesse duas reuniões de cúpula com o ditador norte-coreano, Kim Jong-un (que não deram em muita coisa, é verdade)?
Não é exagero especular que Obama estaria sendo considerado para um Nobel de Paz realmente merecido, já que ele mesmo se surpreendeu com o que ganhou em 2009, como conta em sua recém-lançada autobiografia.
E quanto a Trump? Para Azambuja, seu julgamento como presidente, e não apenas na área externa, é afetado pela extrema polarização do discurso político (para a qual, obviamente, o próprio Trump contribuiu muito).
“Os méritos do outro lado não são reconhecidos. É natural que isso aconteça num ambiente de polarização. Talvez mais adiante se tenha uma ideia mais objetiva sobre os méritos e deméritos do Trump. No momento, não existe nem a preocupação de se fazer essa avaliação, e sim de selecionar os fatos que corroborem uma versão ou outra”, diz.