Jornalistas debocham de assalto, e direita faz sua versão do Sleeping Giants
Um episódio envolvendo jornalistas da Rádio Gaúcha na semana passada mostra que a direita atuante nas redes sociais está tentando reagir a um de seus maiores pesadelos atuais: o Sleeping Giants.
Trata-se de um perfil anônimo no Twitter que pressiona empresas a suspenderem a veiculação de anúncios em sites, canais de YouTube e blogs conservadores, especialmente aqueles que espalham fake news e se utilizam do discurso do ódio.
Alvos frequentes são o filósofo Olavo de Carvalho, o Jornal da Cidade Online e o youtuber Allan dos Santos, entre outros. Por terem conseguido algum sucesso nessa campanha de desmonetização, os “Gigantes Adormecidos” são encarados como uma perigosa ameaça pela direita.
Na última quarta-feira (2), o jogo virou. Ativistas conservadores encontraram numa edição do programa Timeline, da emissora porto-alegrense, uma chance de fazer sua própria versão desse tipo de ação.
O que motivou a celeuma foi uma conversa entre os jornalistas David Coimbra e Kelly Matos sobre o mega-assalto ocorrido na cidade de Criciúma (SC), na madrugada da véspera, dia 1º de dezembro. Durante algumas horas, a cidade foi aterrorizada por explosões, rajadas de armas de fogo e sequestro de reféns por criminosos que queriam assaltar bancos.
Ao comentar o caso, Coimbra minimizou a truculência da ação, dizendo que os assaltantes foram respeitosos com suas vítimas e um exemplo de planejamento.
“Vamos supor que todos os assaltantes fossem como estes, organizados. Tu vê que eles têm método, e mais do que isso, eles têm respeito pelo cidadão”, afirma Coimbra, enquanto a colega de bancada ria.
O jornalista continuou, dizendo que os assaltantes tinha uma certa “filosofia” de preservar os moradores da cidade e não roubar de pessoas simples. E justificou mesmo o fato de um policial e um vigilante terem sido baleados. “É verdade que teve um policial ali que levou um tiro, um vigilante também, mas se não houvesse intervenção [da polícia], tudo sairia na boa”, afirma.
Os comentaristas compararam a ação à série espanhola “La Casa de Papel”, em que assaltantes planejam o maior assalto da história, contra a Casa da Moeda Real, em Madri, capital do país europeu.
“A série La Casa de Papel fala um pouco sobre criminosos com essa filosofia que o David está dizendo. Eles não estão roubando do povo”, afirma Matos.
Bastaram algumas horas para que estes comentários viralizassem em redes bolsonaristas. Um dos primeiros a perceber o potencial do caso foi Leandro Ruschel, influente ativista digital conservador.
“Isso é ter respeito pelo cidadão? Desde quanto bandido que dá tiro em prédio tem respeito? É impressionante”, disse ele. “Isso é o auge da esquerdopatia, isso é o auge da destruição da nossa sociedade”, declarou.
O deputado federal Sanderson (PSL-RS) disse que os jornalistas “quebraram os limites da liberdade de expressão e praticaram apologia criminosa em programa de rádio”.
“Exaltar roubos e gabar publicamente ações dos ladrões do banco em Criciúma é crime. Até do PM baleado eles zombaram. Agora, arquem com as consequências”, declarou o parlamentar.
Dezenas de outros perfis conservadores ecoaram essas reações.
A reação não ficou apenas nas palavras. Reproduzindo o modo de atuação do Sleeping Giants, conservadores passaram a centrar fogo nos anunciantes do programa, e a amplificar cada cancelamento de patrocínio que era divulgado.
Tomaram a decisão de se distanciar do programa empresas como Vinícola Salton, Cooperativa Santa Clara, Unicred, Sebrae e Biscoitos Zezé. A maioria anunciou que estava deixando de anunciar no Timeline.
“Não há contexto possível para tais comentários, no mínimo desrespeitosos e debochados. […] Nossa solidariedade e carinho à cidade de Criciúma e em especial aos familiares e amigos do policial ferido”, escreveu a Zezé.
Já a Salton destacou que, como marca, “valoriza a família, a tradição e as comunidades em que está inserida”, dizendo que os comentários dos jornalistas “não condizem com os valores que a empresa defende”.
A reação levou a um mea culpa por parte dos jornalistas e da RBS, empresa proprietária da Rádio Gaúcha. Coimbra e Matos se desculparam publicamente pelos comentários.
“Diante do erro, não há outro caminho que não seja o da humildade. E reitero meu reconhecimento às forças policiais que atuam em prol dos cidadãos”, escreveu Matos na sexta-feira (4).
“Não relativizei a ação dos bandidos. Não os glorifiquei, como algumas pessoas pensaram. Mas elas pensaram. Então, errei. E por isso peço desculpas” disse Coimbra.
Já a RBS declarou em nota que “pede desculpas pelo ocorrido e afirma seu respeito às instituições financeiras e às forças policiais, assim como a todas as pessoas atingidas pelo lamentável episódio”.
O episódio poderia ser apenas mais um dos incontáveis equívocos praticados diariamente pela imprensa, mas vai além disso. Mostra como a direita decidiu reagir na mesma moeda ao que vê como uma ameaça existencial.
O caso Timeline é uma amostra de que a pressão sobre anunciantes é a nova arena de batalha nas redes sociais. Um Sleeping Giants conservador é o próximo passo.