Brancos sul-africanos de direita tentam se apropriar da sigla do ‘vidas negras importam’
Num país em que a questão racial tem enorme peso histórico, como a África do Sul, mexer com o movimento Black Lives Matter (vidas negras importam) é como soltar fogos de artifício sentado numa pilha de dinamite.
Foi mais ou menos isso que aconteceu na terça-feira (6), na pequena localidade de Senekal, no centro do país.
Cerca de 3.000 fazendeiros brancos se concentraram em frente à delegacia da cidade para protestar contra a violência que sofrem de forma permanente.
O estopim para a manifestação foi o assassinato de Brendin Horner, 21, administrador de uma fazenda e branco. Seu corpo mutilado foi encontrado amarrado a um poste há duas semanas. Os principais suspeitos são dois trabalhadores negros, que foram presos. Suspeita-se que tenha sido um assalto, mas a agressividade do crime chamou a atenção.
O ato descambou para a violência. Parte dos manifestantes tentou entrar na delegacia para retirar de lá os acusados, que seriam provavelmente linchados. A polícia reagiu e impediu a invasão. Houve depredação, e um carro de polícia foi vandalizado.
Seria “apenas” mais um lamentável episódio de violência com cores raciais num país que eliminou o apartheid há meros 26 anos. Mas havia um ingrediente extra que tornou a situação ainda mais tensa: placas em que se lia “Boer Lives Matter” (vidas bôeres importam).
“Boer” (pronuncia-se “búr”) é uma palavra de origem holandesa que define os fazendeiros de origem branca. Mais especificamente, os fazendeiros de origem branca descendentes de holandeses, chamados de “africâneres”.
Aqui, um pouco de contexto se faz necessário: a África do Sul tem a maior e mais influente minoria branca do continente. Corresponde a cerca de 10% da população, que por sua vez, também é dividida: algo como 6% são os “africâneres”, cujos antepassados holandeses chegaram ao atual território da África do Sul no século 17, para colonizá-lo.
Outros 3% são brancos descendentes de ingleses, que também criaram suas colônias no século 19 (o 1% restante é de comunidades de gregos, portugueses, italianos, franceses e outros). Obviamente, ali não era terra de ninguém, mas um vasto território em que já viviam milhões de negros, de várias etnias.
Os africâneres do meio rural são chamados de “bôeres”, um termo que no início era pejorativo, mas que acabou dotado por eles próprios. São em geral profundamente nacionalistas, orgulhosos de seus antepassados e conservadores.
Dentro dessa comunidade, há franjas radicalizadas que defendem ideias de extrema direita. Estes radicais são abertamente saudosista do apartheid, um regime que privilegiava a minoria africâner e segregava os negros em todos os aspectos da vida cotidiana, da impossibilidade de votar e ser votado ao confinamento em áreas periféricas e sem infraestrutura.
Muitos africâneres seguem até hoje ocupando posições importantes na estrutura econômica do país, mesmo com todas as políticas afirmativas adotadas nas últimas décadas para resgatar a dívida histórica com os negros.
No meio rural, essa presença é bastante acentuada em províncias como o Free State, onde ocorreu o crime que motivou a revolta na semana passada.
Conflitos no campo costumam ser frequentes, e crimes especialmente bárbaros levam a explosões coletivas de tempos em tempos.
Há um sentimento por parte dos bôeres de que o governo sul-africano não os protege e até incentiva veladamente a violência, para tentar acelerar o processo de reforma agrária meio na marra.
Além disso, existe um componente político importante: os fazendeiros brancos votam maciçamente em partidos de direita e nutrem grande desconfiança sobre o Congresso Nacional Africano, legenda que está no poder desde o fim do apartheid e tem raízes na esquerda.
Até hoje, muitos consideram o ex-presidente Nelson Mandela, morto em 2013, não um símbolo de reconciliação nacional, mas um comunista que cometeu atos terroristas e só desistiu da luta armada porque foi preso.
Nas redes sociais, o caso virou de imediato uma bandeira para sul-africanos brancos que há muito se sentem ressentidos. “Não podemos sequestrar o BLM e transformá-lo em Boer Lives Matter? Isso vai deixar furiosos muitos esquerdistas”, tuitou alguém que se identificou como White Ranger (cavaleiro branco).
Nesta segunda-feira (12), o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, pediu calma e disse que não há no país ameaça de “limpeza étnica”, como denunciado pelos manifestantes brancos.
A exibição das placas com os dizerem Boer Lives Matter provocou um debate imediato: estaria a África do Sul à beira da guerra racial que Mandela tanto lutou para evitar?
É improvável. Esse tipo de movimento está ainda restrito a uma minoria radicalizada. Muitos, inclusive brancos que vivem em centros urbanos, entendem que a democracia racial não tem volta e que o caminho é cobrar mais vigor por parte das autoridades, não iniciar uma rebelião contra elas.
Ao mesmo tempo, o problema da violência no campo é real e o argumento de que Boer Lives Matter é um slogan que tem seu lugar num país com livre expressão também é forte.
Idealmente, os eventos da semana passada seriam uma nova oportunidade para a África do Sul reexaminar seu desempenho na superação das feridas raciais. Mas o risco de aumentar o fosso é igualmente grande, talvez maior.