Livro mostra como o integralismo, avô do bolsonarismo, marcou a direita brasileira

Filho de um farmacêutico de São Bento do Sapucaí (SP), com corpo franzino, cabeça grande, cabelo domado com óleo e sotaque puxando fortemente o “r” do interior paulista, Plínio Salgado era uma figura improvável para liderar a maior organização de direita da história brasileira.

Sua trajetória e a do movimento que criou, o integralismo, são o mote do recém-lançado “Fascismo à Brasileira” (ed.Planeta), do jornalista e escritor Pedro Doria.

Especializado em transformar episódios históricos em livros-reportagem, não foi por acaso que Doria escolheu este tema. As semelhanças entre bolsonarismo e integralismo são evidentes, assim como os paralelos com o fascismo de Benito Mussolini, que inspirou Salgado.

O integralismo, como o próprio nome indica, enxergava um Brasil sem divisões, que seriam fomentadas pelas pragas gêmeas do comunismo, com sua ditadura do proletariado, e do liberalismo, a ditadura da burguesia.

Segundo seu manifesto de fundação, de 1932, “o Estado Integralista é livre de todo e qualquer princípio de divisão: partidos políticos; estadualismos em luta pela hegemonia; lutas de classes; facções locais; caudilhismos”.

Quase 90 anos mais tarde, é essa a lógica da direita ao criticar movimentos identitários que estimulariam a divisão na sociedade ao promover coisas como cotas raciais e banheiros para transexuais.

Foi esse raciocínio, por exemplo, que levou o ex-ministro Abraham Weintraub (Educação) a dizer “odeio o termo povos indígenas. Só tem um povo nesse país”, na famosa reunião ministerial de 22 de abril.

Examinar o tamanho e a organização dos integralistas é relativizar o ineditismo da onda da direita surgida em meados desta década. Os números e a estrutura do movimento de Salgado impressionam, mostrando que o conservadorismo sempre foi uma força importante na sociedade brasileira, ainda que tenha ficado submersa por longos períodos.

No auge, a Ação Integralista Brasileira (AIB) contava com cerca de 1 milhão de simpatizantes, num país de 30 milhões de habitantes. É como se 7 milhões de brasileiros apoiassem a Aliança Pelo Brasil, partido que Jair Bolsonaro tenta e não consegue tirar do papel, mesmo precisando de menos de 10% disso.

A AIB, como mostra o livro, contava com uma máquina midiática profissional, num país em que o termo “midiático” ainda nem existia.

“Havia meninos escoteiros integralistas, escolas integralistas, imprensa integralista, tanto jornais quanto revistas. Cursos para senhoritas e para senhoras, agremiações culturais, programas de rádio integralistas, cerimônias para os homens, cerimônias de toda sorte, sempre norteadas por um espírito de hierarquia clara, e também camaradagem”, relata o autor.

Seus seguidores eram de um fanatismo que deixaria corados os que se reúnem em torno de Bolsonaro para gritar “Mito!” em aeroportos.

Para começar, os integralistas eram disciplinados, usando calça preta, camisa verde, gravata preta e um símbolo bordado na roupa semelhante ao nazista contendo, dentro do círculo branco, não uma suástica, mas a letra grega ∑ (sigma).

Mantinham ainda rituais excêntricos, como reunir-se no aniversário do movimento para ver o sol nascer e entoar a saudação “Anauê!”(você é meu irmão, em tupi).

Por outro lado, tinham um código de conduta que jamais permitiria ameaçar “encher de porrada” um jornalista ou mandá-lo calar a boca.

“Os encamisados de verde, muito rígidos em relação à ideia de um comportamento educado, rigorosos com a polidez no trato, certamente ficariam chocados com a rudez dos seus sucessores brasileiros”, observa o livro. ​

Apesar disso, as marchas integralistas eram barulhentas e algo intimidatórias, com bombas de efeito moral lançadas para aumentar o impacto.

O movimento também exercia enorme fascínio sobre a intelectualidade, chegando a ter entre seus adeptos nomes como o escritor modernista Menotti del Picchia, o futuro jurista Miguel Reale, o folclorista Câmara Cascudo e até o padre Hélder Câmara, que depois se destacaria na defesa dos direitos humanos como o “Bispo Vermelho”.

O próprio Plínio Salgado foi escritor, jornalista, deputado e trabalhou em escritório de advocacia. Chegou a ter um papel coadjuvante na Semana de Arte de 1922.

Tinha profundo sentimento de religiosidade, exacerbado pelas tragédias que viveu na juventude, ao perder o pai e a primeira mulher, no parto. O catolicismo devoto foi um elemento essencial do integralismo.

Num ponto de especial afinidade com o fascismo, o “Chefe Nacional” (título inspirado no “Duce” italiano) idealizava um passado em que a fibra da sociedade brasileira ainda não havia sido corrompida pela modernidade e pelo cosmopolitismo. Se Mussolini resgatava o Império Romano, Salgado louvava as heranças cabocla e bandeirante.

Plínio Salgado, em foto de 1955 (Acervo UH/Folhapress)

Ao fim, foi a própria força do integralismo que contribuiu para sua derrocada. Primeiro, como alvo da esquerda, que se unificou numa Frente Única Antifascista, superando seus interesses imediatistas (algo que não consegue fazer contra Bolsonaro, aliás).

Em outubro de 1934, uma marcha de 10 mil integralistas foi atacada na praça da Sé por estes avôs dos antifas, posicionados no alto de prédios. A corrida desesperada dos direitistas por proteção, muitos jogando suas camisas ao céu, gerou o epíteto de “galinhas verdes”, que nunca mais largou o movimento.

Mas nada se compararia à reação do presidente Getulio Vargas, desconfortável com a crescente adesão de integrantes das Forças Armadas ao movimento de Plínio Salgado.

Oficialmente, era à ameaça comunista que o presidente reagia quando decretou o Estado Novo, em 1937, mas há fortes indicadores de que o poderio integralista, com suas milícias armadas, foi sua real fonte de preocupação.

“Um relatório de [Eurico Gaspar] Dutra [então ministro da Guerra] indicava que um quarto dos oficiais da ativa do Exército, e até metade da Marinha, eram simpatizantes ou membros da Ação Integralista Brasileira. Ele [Getulio] não poderia conviver com a sombra de uma organização que tinha um exército particular, ao que tudo indicava disciplinado, e com o qual o presidente da República competia pela fidelidade das Forças Armadas “, diz o livro.

Salgado, que tinha a ilusão de ser o candidato de Getulio à sua sucessão, ainda estimularia uma tentativa de depor o ditador. Com o atentado frustrado, exilou-se em Portugal.

Sua AIB foi perseguida e colocada na ilegalidade, com lideranças presas e arsenais confiscados. Com o tempo, tornou-se irrelevante (alguns saudosistas hoje até tentam resgatar o movimento, mas são mais uma curiosidade do que uma força real).

Após voltar ao Brasil, com a queda de Getulio, Salgado passou as três décadas seguintes politicamente ativo, mas já era uma relíquia. Candidatou-se à Presidência em 1955, obtendo magros 8% dos votos, e chegou a estar na lista de fundadores da Arena, partido de sustentação ao regime militar.

Ao morrer, em 1975, aos 80 anos, era um elo perdido para uma época em que a direita priorizava as ruas, não os quartéis.

Ainda assim, a influência do integralismo se nota em cada discurso ou tuíte que denuncia a ameaça comunista e defende valores morais e patrióticos. Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho podem não admitir, mas têm algumas camisas verdes em seu armário ideológico.

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Livro: Fascismo à Brasileira

Autor: Pedro Doria

Editora: Planeta (272 págs.)

Preço sugerido: R$ 42