Por que a Suécia virou modelo para os bolsonaristas na pandemia

Se a direita fala “vai pra Cuba!”, a esquerda agora pode rebater com “vai pra Suécia!”.

O pacato país do norte europeu virou modelo de combate ao coronavírus para o mundo destro, sobretudo a ala mais alinhada ao presidente Jair Bolsonaro. Ironicamente, a Suécia sempre foi vilificada pela direita por seu modelo social-democrata de proteção social. Agora, é uma espécie de Xangri-Lá.

A Suécia destoou da grande maioria dos países europeus por ter adotado uma estratégia bem mais flexível de isolamento social. Escolas permaneceram abertas, restaurantes continuaram a servir clientes em mesas (embora não em balcões e em pé), e ninguém foi multado por dar uma voltinha no quarteirão.

Apostou, ao que tudo indica, na chamada “imunidade do rebanho”, em que a pandemia declina após infectar uma parcela determinada da população. Como em geral 80% das pessoas não têm sintomas, acabam adquirindo anticorpos contra a Covid-19.

Quanto mais pessoas contaminadas, maior essa imunidade, o que dificulta a proliferação do vírus. Após algum tempo, os índices de contágio desabam.

É o que parece estar acontecendo nesse momento, para júbilo dos bolsonaristas. Após atingir pico de 1.803 novos casos em 24 de junho, houve um declínio abrupto. A média dos 7 dias encerrados na segunda-feira (9) ficou em 286.

Da mesma forma, o número diário de mortes, que era de mais de 100 na metade de abril, está abaixo de 10 desde 20 de julho.

“A Suécia venceu o vírus sem abrir mão da liberdade”, resumiu a revista digital Oeste, alinhada à direita.

Empresário apoiador do presidente, Winston Ling seguiu na mesma linha:

Para surpresa de ninguém, o ex-ministro Osmar Terra, guru dos bolsonaristas, se tornou um dos principais propagandistas do país europeu nas redes sociais.


(Terra, não custa lembrar, previa menos de mil mortes no Brasil).

Há um outro lado para o modelo sueco, no entanto, que costuma ser ocultado nessas manifestações. Deixar a economia aberta cobrou um preço alto em número de óbitos.

A Suécia registrou até agora 5.766 mortes, o que pode parecer pouco para nós, que recém batemos a marca de 100 mil. Mas é uma enormidade para um país de cerca de 11 milhões de habitantes.

São 571 mortes por milhão, índice bem mais alto do que registraram os demais países nórdicos, que adotaram medidas mais restritivas, como Dinamarca (107), Finlândia (60), Noruega (47), e Islândia (29).

É mais até do que no Brasil, em que temos 478 mortos por milhão de habitantes (embora estejamos crescendo, enquanto a Suécia estacionou).

Outro aspecto que não pode ser desprezado é que a Suécia é um dos países mais ricos do planeta, com uma população na média saudável e com bom acesso a infraestrutura de saúde. Está em oitavo no último ranking de desenvolvimento humano da ONU.

O Brasil, em comparação, está em 79º lugar,  o que torna no mínimo temerário transportar a experiência sueca para cá.

Não há consenso para o limiar da população que precisa estar infectada para a imunidade de rebanho entrar em vigor, mas a visão majoritária é que estaria acima de 50%. Isso significaria mais de 100 milhões de contaminados no Brasil, um cenário aterrorizador, para dizer o mínimo.

Professor de políticas públicas da Universidade de Estocolmo, Erik Angner me disse em entrevista há duas semanas que a diferença do modelo sueco é que foi baseado em “recomendações”, e não em imposição.

Grande parte da população adotou espontaneamente medidas de distanciamento social, migrando para o home office, adiando visitas a casas de repouso e evitando grandes eventos. Mesmo assim, houve grande número de mortes de idosos em asilos.

Segundo pesquisa realizada entre 16 e 20 de julho pela Agência Sueca de Contingências Civis, ligada ao governo, 87% dos entrevistados disseram estar seguindo medidas de distanciamento voluntariamente.

De acordo com Agner, a Suécia tem um sistema constitucional peculiar, em que restrições de movimentação são vetadas em qualquer circunstância. Modificar a lei exigiria grande esforço político no Parlamento, e o fato é que ninguém quis comprar essa briga.

“Casais com crianças pequenas puderam enviá-las para creches, a maioria das pessoas pôde trabalhar, manter sua renda, sair de casa voluntariamente. Tudo isso foi importante para manter o apoio público às políticas adotas pelo governo”, disse.

Ou seja, a população comprou a ideia, o que é fundamental. Para o professor, apesar disso, é cedo para caracterizar a experiência sueca como um sucesso inquestionável, especialmente se vier uma segunda onda da pandemia.

“Se funcionou mesmo é algo que ainda está em debate. As taxas de morte aqui foram muito altas”, disse.