Artigo mostra importância do catolicismo para ascensão do conservadorismo no Brasil
(Publico aqui artigo dos professores Rodrigo Coppe Caldeira, da PUC-MG e Rodrigo Toniol, da Unicamp, sobre o catolicismo brasileiro e a direita)
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Catolicismo eclipsado
A longa duração do conservadorismo brasileiro e a invisibilidade do catolicismo no período mais recente
Por Rodrigo Coppe Caldeira e Rodrigo Toniol
O calor dos acontecimentos da política brasileira na última década alavancou, entre seus intérpretes, o gênero de análise de conjuntura.
A urgência e, ao mesmo tempo, efemeridade dos fatos no país nos levaram a reagir a cada novo acontecimento assumindo não somente a provisoriedade das interpretações, como também reduzindo o objeto da análise às contingências da política.
Parece ter sido apenas mais recentemente que as análises ganharam fôlego suficiente para demonstrar a longa duração dos processos descritos, relativizando seu aparente ineditismo.
Essa característica também marcou as interpretações sobre política, religião e conservadorismo, fazendo parecer que a face religiosa do conservadorismo brasileiro é evangélica e, por isso, tão recente quanto a presença pública deste grupo na política nacional.
Embora compreensível, esse tipo de enquadramento é limitante em dois sentidos. Primeiro, porque tende a reduzir a relação entre religião e política à lógica das disputas partidárias, das alianças e das eleições.
A isso pode ser atribuída a persistente ênfase que os analistas dão aos movimentos de apoio e de ruptura de atores religiosos com grupos políticos e com governos.
A miopia aqui está em raramente partir da dimensão política intrínseca à teologia dos religiosos, optando, ao revés, por enfatizar as contingências das ações dos religiosos na política.
E, segundo, porque se os evangélicos são a face religiosa mais visível do conservadorismo brasileiro contemporâneo, a força dessa tendência ecoa na tradição do catolicismo, traço tão fundamental da formação societária do Brasil e de um imaginário social que atravessa suas experiências históricas.
Não se trata de uma disputa pela origem ou pelo legítimo credor do que há de elementos religiosos em nosso conservadorismo. O que está em jogo é desfazer as interpretações que tendem a eclipsar a relevância do catolicismo nas análises sobre religião e política na contemporaneidade.
As influências do catolicismo na formação cultural brasileira não nos permitem abandoná-lo como elemento significativo para se compreender os fenômenos políticos atuais.
Se estamos atentos aos substratos societais que insistem em permanecer nas estruturas e no imaginário que atravessa o campo religioso, devemos nos atentar ao fator católico para análises mais compreensivas.
Como entender, por exemplo, os ataques às religiões afro-brasileiras de algumas igrejas evangélicas sem retornar à longa tradição católica de perseguição à “feitiçaria” no período colonial? Ou relembrar sua práticas deslegitimadoras de outras tradições religiosas nas primeiras décadas do século 20?
Em suma, por mais que a demografia religiosa do Brasil tenha se transformado radicalmente nas últimas décadas, deslocando a hegemonia da Igreja Católica, isso não necessariamente significa que o catolicismo tenha deixado de ser uma referência balizadora das relações sociais no Brasil.
Esse chamamento não significa deixar de reconhecer as profundas transformações culturais da política nacional neste período mais recente, mas sim re-enquadrar essas próprias transformações a partir de suas permanências. Ou ainda, como roga a máxima da antropologia estrutural, reconhecer aquilo que quanto mais se transforma, mais permanece.
Os elementos religiosos do conservadorismo político brasileiro –e estamos tratando esse campo em sua vertente autoritária– tiveram em movimentos católicos leigos no início da história republicana sua fermentação e desenvolvimento. Foi nesse novo contexto, em que as forças pluralizantes da sociedade brasileira ficaram mais evidentes, que a faísca da reação foi acendida.
Bebendo na tradição contrarrevolucionária francesa, toda uma estirpe de pensamento e ação antimoderna brasileira foi sendo gestada desde a década de 1920, com, entre outros, Jackson de Figueiredo, Gustavo Corção e Plinio Corrêa de Oliveira. O último liderou desde meados dos anos 1930 um grupo de militantes católicos, incluindo clérigos, que desembocou na criação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a TFP, em 1960.
Esse movimento teve papel de destaque entre a direita religiosa brasileira, apoiando o golpe civil-militar de 1964 e o regime ditatorial com o intuito de garantir a sua própria segurança e existência –recebeu generais para eventos privados e os agradeceram pelo golpe.
Depois da morte de Plinio Corrêa (foto acima) em 1995, o último líder da já combalida direita católica, que era tido como profeta e cultuado como um santo pelos seus seguidores, acreditou-se que as forças que a impulsionaram haviam desaparecido.
Porém, essas forças se rearranjaram a partir do final da década de 1990. Inicialmente por meio do mundo nascente da blogosfera, e posteriormente via redes sociais, atores antes marginais, como Olavo de Carvalho, ganharam força suficiente para mobilizar afetos e imaginários, principalmente entre os jovens.
Com a ebulição das guerras culturais que chegaram ao Brasil e que tiveram nas jornadas de junho de 2013 um momento chave e o crescimento da insatisfação com os governos de Dilma Rousseff condensados na onda antipetista, grupos católicos conservadores vislumbraram uma oportunidade e fizeram coro com algumas tendências evangélicas, formando um caldo de potenciais apoiadores da campanha ao Poder Executivo de um candidato afeito à sua agenda de costumes.
Os detalhes do enredo dessa história que conecta a TFP, a blogsfera olavista e a adesão dos católicos ao bolsonarismo ainda estão para ser contados. Por enquanto, o que podemos reconhecer é que esse alinhamento se reforça a partir de um horizonte teológico e de uma atitude psicopolítica.
Em termos teológicos, os grupos católicos que passaram a demonstrar alguma atuação mais contundente nos últimos anos no Brasil tomam para si a curiosa missão de recristianizar o catolicismo.
Recristianizar, nesse caso, é sinônimo de restaurar uma ordem perdida após a despressurização distensora com a modernidade levada pelo Concílio Vaticano 2º (1962-1965). A revolução teológica que se coloca no horizonte desses atores é a contrarrevolução, a restauração. Uma luta feita em latim, língua cuja diferença entre restaurar e renovar é apenas um problema de extensão. Nesses termos se arma a teologia de uma política do conservadorismo.
Se há algo novo nessa atitude, ela não está em seus efeitos para o campo da religião, mas sim nos contornos da linguagem política que ela assumiu no mundo do século 21.
Há anos estamos diante de um processo de alinhamento entre grupos católicos e grupos evangélicos, que têm conseguido articular suas reivindicações na lógica da cidadania.
Testemunhamos a emergência daquilo que o sociólogo argentino Juan Marco Vaggione tem chamado de cidadania religiosa. Como exemplo, basta lembrar da pauta relativa à chamada ideologia de gênero, um tema cuja mobilização inicial foi sobretudo católica.
Com ela não se abandona o debate secular impondo a ele contornos religiosos, mas se assume uma espécie de secularismo estratégico, capaz de acomodar a defesa por uma ordem moral universal em termos de direito, o direito da maioria cristã. É assim que a vontade teológica da restauração ecoa na atitude política de reivindicação desse novo tipo de cidadania.
Se é a nova direita o que nos interessa como analistas, é preciso reconhecer os ecos da história que nela ressoam. E, nesse caso, poucos passos são possíveis enquanto a força do catolicismo conservador estiver eclipsada em nossas reflexões.
Rodrigo Coppe Caldeira é historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas
Rodrigo Toniol é antropólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp