Artigo: Os equívocos do ministro Barroso sobre o artigo 142 da Constituição
(Publico aqui um artigo do professor de ciência política Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco, em que contesta a interpretação do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, sobre o artigo 142 da Constituição, que trata do papel das Forças Armadas).
Os equívocos do ministro Barroso
Por Jorge Zaverucha
Em 10 de junho passado, o ministro Luís Roberto Barroso, na qualidade de relator do Mandado de Injunção por meio do qual se requeria a regulamentação do art. 142 da Constituição, de forma a estabelecer o escopo e o modo de atuação das Forças Armadas, em situações de ameaça à democracia, negou seguimento ao mesmo. Em seu arrazoado, data vênia, o ministro cometeu alguns equívocos.
O ministro afirma que “quanto ao elemento histórico, não há nada nos anais da Constituinte que permita uma interpretação no sentido de que se atribuiu às Forças Armadas tal papel [moderador]. Muito pelo contrário, o que a Constituição de 1988 buscou, conforme todos os relatos de que se tem notícia, foi justamente a transição para a supremacia do poder civil e da Constituição”.
Os anais não registram, mas o general Leônidas Pires, então ministro do Exército, ao perceber que os constituintes tiraram, da primeira versão da Constituição, o papel de garantes da lei e da ordem das Forças Armadas, ficou irado. Ameaçou zerar todo o processo constituinte caso o papel de garantes não voltasse ao texto constitucional.
A Espada de Dâmocles do general funcionou. Os senadores Fernando Henrique Cardoso e José Richa costuraram um acordo que satisfez tanto militares como constituintes. Manteve-se o papel de garantes às Forças Armadas que já estava insculpido no art. 177 da Constituição de 1946. E adicionou-se a possibilidade de tanto o Judiciário como o Congresso convocarem as Forças Armadas para intervirem em assuntos internos.
A emenda foi pior do que o soneto, pois os constituintes, ao não especificarem quais instâncias do Judiciário e do Legislativo poderiam ensejar a convocação castrense, fizeram com que o juiz da 4ª. Vara de Barra Mansa (RJ) solicitasse ao Exército a retomada da posse da usina da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) em Volta Redonda. A operação, em 1988, terminou na morte de três operários.
Uma nova versão do art. 142 foi redigida pela Lei Complementar 69, de 23 de julho de 1991, e depois atualizada pela Lei Complementar 97, de 9 de junho de 1999.
Pelas mesmas, apenas os presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados poderiam manifestar pedido ao presidente da República de mobilizar as Forças Armadas. Cabendo a ele o poder de aceitar ou vetar o pedido. Tudo isto foi ignorado pelo ministro Barroso em seu arrazoado histórico. No fundo, foi restabelecida a cláusula constitucional de 1967/69 que concede apenas ao Executivo o direito de decidir sobre a intervenção interna.
Ainda na dimensão histórica, o ministro escreveu “que a Constituição de 1988 buscou, conforme todos os relatos de que se tem notícia, justamente a transição para a supremacia do poder civil e da Constituição”. Respeitosamente, dois novos equívocos.
Há relatos contrários a versão de Barroso. Talvez ele não os tenha lido. Da minha parte, escrevi três livros publicados, em editoras de porte nacional, contestando o não estabelecimento de um controle civil sobre os militares.
O terceiro capítulo de “FHC, Forças Armadas e polícia” é dedicado à permanência de legados autoritários na Constituição de 1988. Isto nada tem de terraplanismo constitucional (itálicos dele). Na dimensão histórica-comparativa, tanto Pinochet quanto Ortega copiaram o art. 142 para suas Constituições autoritárias. No Chile pós-regime militar, a nova Constituição democrática aboliu este artigo.
Finalmente, o último equívoco. Barroso diz que o art. 142, caput, da Constituição “é norma de eficácia plena, que não suscita dúvidas sobre a posição das Forças Armadas na ordem constitucional”. Se isto fosse induvidoso, o Mandado de Injunção não teria surgido, nem estariam em disputa várias interpretações sobre a redação deste artigo.
De fato, a escrita do art. 142 é nitidamente dúbia. O rol deste artigo é numerus abertus em relação ao possível comportamento autônomo dos militares.
Não faltam exemplos de comportamento autônomo dos militares no pós-85. Remeto, apenas, a abril de 2018, quando o então comandante do Exército invocou o art. 142 para intimidar ministros da Suprema Corte. Eles se preparavam para julgar a demanda de habeas corpus do ex-presidente Lula para não ser preso. Caso ficasse solto, seria um sério obstáculo às pretensões eleitorais de Bolsonaro.
Já o rol do art. 84-XIII é numerus clausus na concessão ao presidente da República do direito de comandar as Forças Armadas. Redação direta e taxativa.
O art. 142, repito, é aberto para exatamente permitir várias interpretações. A dos militares é que as Forças Armadas têm o poder soberano de decidir quando a lei e a ordem foram violadas. Daí o empenho do general Leônidas para que esta prerrogativa não fosse retirada da Constituição. Espanta constatar que este artigo continua intocado em pleno século 21, com o aval do ministro Barroso.
Jorge Zaverucha é professor titular do Departamento de Ciência Política da UFPE e Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago