Livro sobre nazismo explica a defesa por Bolsonaro de armas contra a ditadura

Entre os muitos palavrões e ameaças proferidos por Jair Bolsonaro no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, sua defesa radical de armar a população causou barulho.

“É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”, disse.

Em outro trecho, o presidente vinculou armar a população a resistir a ditaduras, que associou ao modo como governadores e prefeitos têm se comportado para assegurar o isolamento social durante a crise do coronavírus.

“Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não da pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais”.

A defesa do armamento por Bolsonaro é bastante conhecida, mas esse argumento causou certa estranheza.

O motivo para a surpresa é que, geralmente, justifica-se facilitar o acesso a armas com base em dois pontos principais: a autodefesa do cidadão contra criminosos e o exercício de um direito individual de propriedade.

Contudo, há um terceiro ponto, menos falado e igualmente relevante: a defesa do cidadão contra a tirania do Estado.

Com o aumento do número de regimes democráticos nas últimas décadas, esse aspecto perdeu muito de sua força, mas é visto por muitos, na verdade, como o pai de todos os argumentos.

Ele está, por exemplo, na famosa Segunda Emenda da Constituição americana, que fala em milícias com o direito de portar armas.

No final do século 18, quando o texto foi concebido, o espectro de um governo tirânico nos EUA era bastante presente, afinal o país recém-criado ainda era uma democracia em formação. Além disso, o risco de uma restauração do domínio britânico não podia ser desprezado.

Apesar de essa discussão hoje soar um tanto anacrônica, ela segue sendo mencionada como argumento armamentista, inclusive no Brasil.

Para entender os motivos que levaram Bolsonaro a citá-lo na fatídica reunião, um autor relevante é o advogado e escritor americano Stephen P. Halbrook, 72.

Autor de nove livros, Halbrook trabalha para a NRA (National Rifle Association), o lobby armamentista americano. Já defendeu diversas vezes o direito às armas na Suprema Corte contra governos locais e entidades que tentam restringi-lo.

Cada vitória aumenta seu prestígio junto à tribo armamentista, inclusive aqui no Brasil.

Um de seus livros em especial é citado frequentemente e ilumina o atual debate: “Gun Control in the Third Reich”, de 2013, que no Brasil foi lançado como “Hitler e o Desarmamento” , pela Vide Editorial.

Nele, Halbrook afirma que desarmar a população, como fizeram os nazistas nos anos 1930, é o primeiro passo para consolidar uma tirania.

“Políticas nazistas proibindo a posse de arma de fogo ajudaram a consolidar o poder de Hitler, exacerbaram a perseguição de judeus, auxiliando em sua prisão e deportação, e anteciparam algumas das políticas mais severas implementadas durante a guerra”, escreve ele.

Ou seja, diz o autor, longe de representar um instrumento de pacificação social, o desarmamentismo é um convite a ditadores.

“Os nazistas confiscaram armas de fogo para evitar resistência armada, seja individual ou coletiva, para sua própria criminalidade”, prega.

O erro cometido há quase 90 anos poderia ser repetido agora, assegura ele. “O paradigma de que governos devem ter o monopólio de armas leves implica no surreal postulado de que cidadãos devem ser tratados como os judeus eram na Alemanha nazista”, afirma.

Um fã declarado de Halbrook é Benê Barbosa, influente ativista pró-armas, bastante atuante na internet e assíduo frequentador de eventos conservadores.

No ano passado, numa entrevista que fiz com ele, Barbosa mencionou este argumento de que as armas seriam uma espécie de seguro antitirania.

“Se você acabar com todas as armas para a população, só o Estado as terá. O risco caso um dia tenhamos um governo ditatorial é muito grande, e isso acontece toda hora na América Latina”, afirmou. A Venezuela e Cuba, diz ele, são os principais exemplos.

Esse postulado todo é bastante coerente com a psique da direita, que, de modo geral, desconfia do poder do Estado.

Isso se manifesta não apenas na defesa das privatizações e da desregulamentação da economia, mas na tese mais ampla de que é preciso se defender do apetite voraz dos governos. Inclusive com as armas, se for preciso.