Como os liberais que pedem o fim do Estado lidariam com o coronavírus?

Poucos momentos exigem tanto do Estado como o combate a uma pandemia.

Para os defensores de um ente público forte e bem nutrido, o enfrentamento ao coronavírus tem sido um momento de redenção, após a ascensão do discurso liberal no Brasil e no mundo nos últimos anos.

Agora que o jogo virou, como se sentem os adeptos de uma forma extremada de liberalismo, que ganhou adeptos por aqui recentemente?

Chamados de libertários, ou anarcocapitalistas (“ancaps”), eles defendem a extinção do Estado e a regulação das relações humanas de forma 100% privada.

Não haveria entidade com monopólio sobre a violência e a tributação, que são as características clássicas de um Estado.

Trocas comerciais, serviços públicos, administração da justiça, das leis e da segurança seriam feitos com base em contratos entre indivíduos.

(Escrevi uma extensa reportagem sobre esse pessoal para o caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, no ano passado, que você pode ler aqui).

Numa imagem que libertários e “ancaps” usam bastante, as cidades seriam como condomínios fechados, ou shoppings centers: espaços coletivos geridos com base no conceito da propriedade privada.

A ideia parece irreal, mas pulsa em diversos lugares atualmente: em institutos como o Mises Brasil, partidos como o Novo, setores como o das criptomoedas e até no governo federal (mais especificamente, em postos de comando no Ministério da Economia).

Youtubers e redes sociais também reverberam a ideologia libertária, que tem apelo especial entre os jovens.

O youtuber Raphael Lima, do canal Ideias Radicais, arriscou-se a dar uma resposta num vídeo de fevereiro com um título sugestivo: “Como o Ancapistão resolveria o coronavírus?”. (Ancapistão é uma forma autoirônica de os anarcocapitalistas se definirem).

Raphael tem 592 mil inscritos em seu canal e é o que se poderia chamar de um influenciador digital para quem defende o fim do Estado.

No vídeo, sua resposta é simples: o conceito de cidades privadas facilitaria lidar com a crise. É um modelo libertário por excelência, que prevê que a vida se organizaria nessas unidades políticas menores.

Num exemplo hipotético, essas comunidades mais restritas identificariam com mais facilidade doentes de coronavírus e os encaminhariam para uma quarentena. Não haveria a burocracia do Estado atrapalhando.

Como seriam comunidades privadas, teriam o direito de expulsar pessoas que não colaborassem, ou de evitar a entrada de contaminados de fora, se assim o desejassem. A lógica seria a mesma de deixar frequentar a sua casa quem você quiser.

“Hoje você pode infectar pessoas e o Estado te protege. Numa sociedade libertária, infectar seria uma agressão passível de restituição da comunidade, baixando a probabilidade de isso acontecer”, afirma Lima.

O sistema de saúde seria totalmente privado, o que não quer dizer que não haveria um comprometimento das empresas com a cura das pessoas doente, segundo ele.

Isso, diz o youtuber, ocorreria por um motivo simples, à parte o sentimento de humanidade e missão dos profissionais da área médica. As empresas têm interesse em salvar vidas, porque pessoas vivas consomem e geram lucro.

E como ficam as pessoas que não podem pagar um sistema privado de saúde, numa sociedade sem Estado?

Quem responde é outro anarcocapitalista assumido, o advogado Rodrigo Marinho.

Ligado ao Instituto Mises e diretor-legislativo da bancada federal do Partido Novo, em Brasília, ele diz que entidades não-estatais poderiam suprir essa necessidade. “Há soluções privadas de entidades como o Rotary, ou mesmo a Igreja”, afirma.

Segundo Marinho, numa sociedade sem Estado, os sistemas políticos seriam menores e mais fáceis de administrar. “A política não vai deixar de existir. Vai continuar existindo um sistema integrado de saúde. Ele apenas seria contratual, não coercitivo”, diz.

E não seria preciso uma entidade maior regulando todo esse esforço, e impedindo que as pessoas fizessem o que achasse melhor?

Não, responde ele. “Relações acontecem de forma coordenada. Os países já estão agindo dessa forma nessa crise, sem que haja ninguém mandando, apenas com orientações da OMS [Organização Mundial da Saúde]”.

Outra resposta “ancap” seria tentar aproveitar a crise para reduzir o poder e a presença do Estado na economia.

Nesse sentido, afirma Marinho, algumas medidas tomadas pelo ministro Paulo Guedes são positivas, como desonerações e a liberação do FGTS de trabalhadores.

Em um dos muitos grupos de Facebook de anarcocapitalistas, um integrante perguntou neste domingo (15) num fórum: “Como o coronavírus seria tratado no anarcocapitalismo?”.

Entre respostas engraçadinhas do tipo “existiriam vários vírus competindo entre si”, um membro resumiu bem o sentimento dessa tribo no atual momento.

“Não tem como prever o mercado. O que dá pra afirmar é que no Ancapistão não haveria o Estado atrapalhando as pessoas que tentariam resolver esse problema”.