Grupos religiosos fazem campanha contra especial de Natal do Porta dos Fundos
Entre as tradições de fim de ano, ao lado do show do Roberto Carlos e daquela música da Simone, uma tem ganhado força: a ira de grupos religiosos, sobretudo evangélicos, com o Porta dos Fundos.
Os protestos de 2019 têm como mote o especial de Natal que o grupo colocou no ar na semana passada na plataforma Netflix, chamado A Primeira Tentação de Cristo.
É um programa de 46 minutos, em vez dos esquetes curtos pelos quais o Porta é mais conhecido.
Resumindo para quem não viu (e sem dar spoiler), o enredo satiriza uma das passagens mais importantes da vida de Jesus, quando ele, já perto dos 30 anos, jejua por 40 dias no deserto, após ser batizado.
Nesse período, é tentado pelo Diabo, mas resiste às investidas. De volta do retiro, dá início às suas pregações e milagres, até ser crucificado, três anos depois.
Na versão do Porta, Jesus (Gregório Duvivier) traz um amigo meio esquisitão (Fábio Porchat) para casa, ao retornar do deserto, bem na noite de Natal.
O filho de Deus vive um romance gay, em outras palavras, para espanto de José, Maria, reis magos e até de Deus.
A saraivada contra a sátira começou quase que imediatamente.
A Coalizão pelo Evangelho, grupo que reúne pastores de dezenas de igrejas pelo Brasil, iniciou uma campanha pelo cancelamento da assinatura da Netflix.
“Manter-me na qualidade de um patrocinador de produções cinematográficas que zombam e vilipendiam o Senhor é o mesmo que esbofeteá-lo, cuspir nele, bater em sua cabeça para lhe enterrar os espinhos da coroa”, escreveu o pastor Joel Theodoro, da Igreja Presbiteriana do Bairro Imperial, no Rio de Janeiro.
Pastor da Igreja Trindade, em São José dos Campos (SP), Thiago Guerra formulou um decálogo sobre qual deveria ser a relação de cristãos com o episódio do Porta veiculado pela Netflix.
“Todo cristão tem a responsabilidade de ser ‘sal’ nesse mundo, ou seja, evitar a putrefação constante de nossa sociedade. Portanto o engajamento cultural do cristão é uma obrigação”, afirma ele, ao explicar por que defende o boicote à plataforma de vídeos como resposta.
Outro a protestar contra a produção foi o deputado federal Marco Feliciano (Podemos-SP), um dos expoentes da bancada evangélica, que escreveu, numa rede social: “Está na hora de uma ação conjunta das igrejas e pessoas de bem para dar um basta nisso. Unidos somos fortes!”.
Já o ator Carlos Vereza, conhecido por suas posições de direita, chamou os integrantes do Porta dos Fundos de “lamentáveis”, “idiotas pretensiosos” e daí pra baixo.
No site change.org, uma petição online pedindo o “impedimento” do filme, “por ofender gravemente os cristãos”, tinha mais de 400 mil assinaturas às 19h30 de terça (10).
No passado, já houve críticas de conservadores ao Porta dos Fundos, em ocasiões em que satirizaram a religião. Eles estão acostumados, portanto.
O especial de Natal de 2018, por exemplo, ironizava a Santa Ceia, e acabou de ser agraciado com o prêmio Emmy Internacional.
O grupo também já sofreu críticas de outras formas. Foram processados pelo Botafogo (sim, o time) por um esquete, mas ganharam a ação judicial.
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Procurei Antônio Tabet, um dos integrantes do Porta do Fundos, que interpreta Deus no filme.
Ele enviou mensagem, em que considera a ação contra o especial um gesto oportunista.
Segue a íntegra da resposta de Tabet:
“Acredito que meu Deus de amor, onisciente, onipresente e onipotente, tenha prioridades maiores do que se ofender com um especial de humor de um grupo de comediantes brasileiros no Netflix. Dito isso, seria previsível que homens oportunistas e vaidosos, que acham que falam em nome de Deus mesmo sem procuração, queiram mobilizar fiéis menos esclarecidos em torno de campanhas de boicote ou censura.
Há sempre a opção de quem não gostar do conteúdo de não assisti-lo. Eu mesmo não sou ateu, acredito em Deus e não frequento cultos ou missas porque não concordo com o que é dito sobre Ele lá, e nem por isso defendo que templos ou igrejas sejam fechados.
Campanhas assim seriam apenas lamentáveis se não fossem também uma publicidade gigante entre quem defende a liberdade de expressão e conhece o verdadeiro caráter dos líderes religiosos que atuam na base da senha do cartão dos crentes. Estes sim desrespeitam meu Deus”.
Procurei a assessoria do Netflix para comentar a campanha de cancelamento de assinaturas, mas não consegui contato com eles.
PS: como lembrou um colega, o grupo brasileiro está seguindo uma longa tradição ao satirizar a religião cristã. Quem não se lembra de “A Vida de Brian”, dos britânicos do Monty Pithon, e sua memorável cena final da crucificação?