Aliança de Bibi com Bolsonaro contraria DNA humanista de Israel, diz professor
A era Binyamin Netanyahu em Israel parece estar chegando ao fim, após dez anos em que o político conservador governou a mais vibrante democracia do Oriente Médio sem grande esforço para resolver o conflito com os palestinos.
Embora sua imagem no exterior esteja bastante desgastada, Bibi deixará um legado importante para a sociedade israelense, que hoje é mais aberta ao mundo.
A opinião é do professor Arieh Saposnik, da Universidade Ben-Gurion, um dos principais estudiosos em seu país da história do sionismo e do nacionalismo judaico. Ele veio ao Brasil a convite do Instituto Brasil-Israel para uma série de palestras em universidades.
Saposnki, apesar do reconhecimento do impacto que o primeiro-ministro deixará para o país, é um crítico dele.
Em entrevista à Folha, ele diz que Netanyahu é um oportunista que, ao se aliar a políticos como Jair Bolsonaro, contraria o DNA humanista do sionismo e da própria ideia do Estado de Israel.
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O sr. estuda o sionismo e a questão religiosa. Como isso afeta o conflito Israel-Palestina? A terra é um bem imobiliário, mas em Israel e na Palestina há também um caráter sagrado atribuído a ela. Isso torna muito mais difícil a resolução do conflito. No caso de Jerusalém, isso é ainda mais difícil. Não é surpreendente que em negociações anteriores, Jerusalém sempre tenha ficado por último.
O sr. não parece muito otimista com a possibilidade de um dia haver um acordo… Se estivéssemos nos anos 90, eu estaria bem mais otimista. Admito que é muito difícil achar uma solução no futuro imediato.
Como isso se relaciona com a força que a religião adquiriu nos últimos anos? Há duas correntes que competem em Israel. De um lado, partidos religiosos ganharam força. De outro, há movimentos muito fortes que mostram um certo enfraquecimento deles. Em Tel Aviv e outras cidades decidiu-se que haverá transporte público no shabat [sábado, dia sagrado do judaísmo]. Os partidos religiosos sempre lutaram contra isso. Religiosos ou seculares, israelenses hoje têm dificuldade em acreditar que movimento no processo de paz é possível. É uma questão de confiança, que havia no passado. Lembro que nos anos 90, os israelenses lotavam os clubes noturnos de Ramallah [cidade palestina]. Isso acabou, desde a segunda Intifada [revolta palestina que durou de 2000 a 2005].
Qual é a imagem dos partidos religiosos hoje no país? A força não vem apenas da demografia, mas do fato de que muitos israelenses não-religiosos os veem como representantes do judaísmo autêntico. Se conseguirmos recapturar o conteúdo da cultura hebraica, do tipo de valores que o sionismo representa, haverá um contrapeso à força dos religiosos. Há muito ressentimento em razão da falta de transporte público no shabat, do fato de eles não fazerem serviço militar, de controlarem tudo sobre lei de família, de não haver casamento civil em Israel. Mas há uma visão de que são os guardiões, os autênticos judeus.
Israel vive um momento de paralisia, sem conseguir formar um governo. Como isso afeta a confiança das pessoas na política? A sociedade israelense sempre foi muito dividida. O que sempre aconteceu é que, apesar das diferenças profundas, de alguma forma havia um sentimento unificado de missão. Desde os anos 90, a divisão começou a ficar mais forte do que qualquer sentido de propósito conjunto. Houve uma tribalização da sociedade israelense. Por outro lado, a sociedade civil de Israel é incrivelmente robusta. Vejo jovens se voluntariando, fazendo coisas, viajando. Israel é o país com o maior número de ONGs per capita no mundo. A dificuldade é traduzir isso em política em nível nacional.
Como o sionismo é visto pelas novas gerações? Poucos entendem o que o termo significa. Há 20 anos, sionismo era uma gíria para os jovens. Se alguém queria pedir para o outro parar de dar lição de moral, dizia: “pare com este sionismo!”. A palavra era tratada de maneira muito cínica. Mas acho que há um retorno, de tentar entender onde somos, de onde viemos, qual caminho estamos trilhando.
E como o sionismo é visto na Europa e nos EUA, onde muitas vezes há ataques contra alvos judeus? Depende de quais círculos estamos falando. Em muitas universidades, sionismo é sinônimo para qualquer palavra negativa que você conseguir pensar: imperialismo, racismo, apartheid. Na maior parte, em razão da questão palestina. A palavra sionismo foi sequestrada por certos grupos dentro de Israel como sinônimo de apoio patriótico excessivo das políticas de governo, de um tipo de nacionalismo arrogante.
Há espaço para um campo moderado na sociedade israelense? Acho que sim. Se você olhar para os resultados da última eleição, o maior partido foi o campo azul e branco, moderado.
A resolução do impasse passa necessariamente pela saída de cena de Natanyahu? Ele é um político muito experiente e hábil. Sempre há a chance de encontrar uma maneira de ficar. Mas acho que há uma ampla sensação, mesmo entre os eleitores do Likud [partido do primeiro-ministro], de que a era Netanyahu precisa chegar ao fim.
Qual será o legado dele para Israel? Ele mudou de forma duradoura a sociedade israelense, sobretudo na economia. Israel se abriu, inclusive em termos de mentalidade. Quando eu era criança, toda vez que saía de Israel, não importa se fosse por dois dias, era preciso pagar uma taxa no aeroporto, bastante substancial. Isso acabou. Somos uma sociedade mais aberta, mais cosmopolita. Em outros pontos, obviamente, nos tornamos uma sociedade mais fechada, que se sente atacada.
Netanyahu é um conservador? Hoje ele se caracterizaria dessa forma, mas nem sempre foi assim. Ele era mais centrista. Na verdade, é um oportunista. De forma geral, se colocou em linha com as tendências ultraconservadoras ao redor do mundo.
Como o sr. vê a relação dele com o Brasil e Bolsonaro? Há uma onda global de direita. Mas há rachaduras começando a aparecer sobre algumas das alianças que Netanyahu formou. A principal é com [Donald] Trump, não apenas por causa do impeachment, mas também pela ação na Síria. Podemos estar vendo o início de um movimento do pêndulo para outra direção. A política externa dos últimos anos de Netanyahu tem sido colocar todos os ovos na mesma cesta. Se essa onda estiver mudando, isso será problemático. Israel foi criado não apenas como um mecanismo burocrático, para administrar a economia, coletar lixo e coisas do tipo. Israel foi criado com um certo propósito. O sionismo, na criação do Estado, era visto como um tributo a uma certa ideia de humanidade. Alianças com regimes que não refletem essas ideias podem ser problemáticas.
Por que exatamente o pêndulo está se movendo em Israel mais para o centro? A razão principal se deve ao fato de que o slogan de Netanyahu era de que seria o “Sr. Segurança”, mas ainda vivemos com foguetes vindo de Gaza regularmente. Ele não ofereceu as respostas que prometeu. Há também uma certa exaustão política [com a direita] e as acusações de corrupção. A sociedade israelense vive sempre na tensão entre querer ser parte do mundo e ter um grande medo disso.
Como a ideia de dois estados é vista hoje em Israel? Depende de por quem. A extrema direita e a extrema esquerda dizem que é uma coisa do passado, que não funciona mais. Mas muitos ainda a veem como a menos nociva das soluções. O problema é que os desafios para essa solução parecem assustadores, é difícil haver movimento.