Documentário mostra como o real vingou contra todas as probabilidades

Em 25 anos, o Plano Real ganhou o status de mito fundador da nossa moderna economia, a ponto de as gerações mais novas terem dificuldades de conceber como era a vida antes desse grito do Ipiranga monetário. Porém, é só assistindo a depoimentos dos pais fundadores da moeda que se percebe como a complexa obra de engenharia econômica que derrubou a inflação só deu certo por uma combinação de fatores altamente improvável.

Em resumo, tinha tudo para dar errado, como fica claro no recém-lançado documentário “Real: Muito Além de uma Moeda”, produzido pelo grupo liberal Livres para marcar um quarto de século do plano.

O filme entrevista os principais responsáveis pelo real, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os ex-ministros Pedro Malan e Rubens Ricupero e quase todos os principais economistas responsáveis pela concepção e execução do plano, como Persio Arida, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Elena Landau. Chama a atenção a ausência de André Lara Resende, coautor do celebrado “Larida”, o paper escrito com Arida em 1983 que depois seria uma das principais bases da concepção da nova moeda.

Segundo o Livres, a opção foi por focar em depoimentos sobre a implantação do plano, e diversas pessoas acabaram ficando de fora, incluindo Lara Resende.

“[O real] Foi um acaso. Não era para ter acontecido”, afirma Arida no filme. O ceticismo àquela altura como mais um plano de estabilização após sucessivos fracassos dominava o país, que tinha em Itamar Franco um presidente titubeante e em FHC um ministro da Fazenda que não era da área. A própria decisão de Itamar de colocar FHC como seu quarto ministro da pasta foi um lance arriscado de criatividade política que depois se revelaria magistral.

A grande pergunta, obviamente, era se a criação de uma moeda intermediária para neutralizar a inércia inflacionária (a URV) antes da chegada da definitiva (o real) seria algo que migraria dos modelos teóricos, em que parecia funcionar muito bem, para a vida real.

Era algo nunca tentado em lugar nenhum do mundo, e poucas vezes a expressão jabuticaba caiu tão bem numa discussão econômica. Como diz FHC no filme em tom de blague, a URV foi a primeira moeda virtual criada, duas décadas antes de isso virar moda.

Não menos importante, havia a batalha da comunicação, a de explicar o mecanismo de conversão do cruzeiro real para a URV e convencer as pessoas de que dessa vez não haveria congelamento. Um cidadão especialmente cético dava expediente no Palácio do Planalto. Itamar, lembra FHC, era adepto da filosofia “prende o Abílio e faz congelamento”, em referência a Abílio Diniz, à época na rede de supermercados Pão de Açúcar e símbolo do setor varejista, com suas maquininhas de remarcar preço. Como se sabe, o empresário continuou livre, assim como os preços.

Dobrar a desconfiança de Itamar e fugir de sua insistência em congelamento e aumentos do salário mínimo foram parte importante do desafio, como registra Ricupero em passagens divertidas do documentário. “Quando tocava o telefone, palpitava meu coração”, relembra Ricupero, que assumiu a Fazenda em razão da candidatura presidencial de FHC e ficou no cargo até ser derrubado pelo “escândalo da parabólica” (não mencionado pelo filme, aliás).

Para ser justo, não era apenas Itamar que trabalhava contra seu próprio plano, mas uma parte considerável da classe política, incluindo importantes caciques do PSDB. O então deputado José Serra, relembra Bacha, tinha diversas ressalvas ao plano. Mas nada se comparava a Mario Covas, àquela altura a principal liderança do partido, que manifestava hostilidade aberta ao real em reuniões internas, embora para o público externo o defendesse.

O documentário tem ricas imagens da luta anti-inflacionária ao longo de décadas e faz um bom trabalho de garimpagem de momentos memoráveis da saga que arrastou dezenas de ministros e destruiu reputações.

Aos olhos de hoje, a entrevista coletiva da então ministra Zélia Cardoso de Mello anunciando o confisco da poupança parece extraída de uma outra era, mais surreal (é provável que o mesmo seja dito sobre nossa política atual daqui a 25 anos).

Como afirma Gustavo Franco num depoimento, vencer a inflação era como estar nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Uma turma de jovens ia para o front, morria e era substituída por outra, num ciclo interminável.

Por vezes, a sucessão de depoimentos sem muito roteiro é cansativa, e fica a sensação de que a produção poderia ter sido enxugada um tanto.  A ideia dos realizadores é reduzir a versão apresentada na pré-estreia na última terça-feira (30) de 100 para 60 minutos.

No fim, o foguete lançado um tanto no escuro, na imagem usada por Malan em seu depoimento ao documentário, cumpriu sua missão e, mesmo enfrentando percalços como o da caótica desvalorização de janeiro de 1999, consolidou-se. Ficaram para trás as imagens de consumidores esbaforidos pelos corredores de supermercados nos anos 1980, atrás de produtos antes que subissem de preço ou sumissem da prateleira.

Como definiu um consumidor numa entrevista que o filme resgata, era “a Olimpíada da carne”. Graças ao real, ao menos dessa tragicomédia nos livramos.