Arma é para cidadão se defender e não resolve questão da segurança, diz ativista
Florianópolis (SC) – Benê Barbosa teve seu primeiro contato com uma arma de fogo, um revólver calibre 32, numa idade em que crianças brincam com pistolas de plástico. Tinha 4 ou 5 anos, e um dia o pai o levou para o quintal da casa onde moravam, em Praia Grande (litoral de SP).
“Ele pegou uma lata de 18 litros de tinta, botou água, me pôs no colo e me ajudou a puxar o gatilho. Lembro do estampido, do furo na lata, da água saindo. E aí ele falou: ‘é isso que uma arma faz. Não é brinquedo’”, lembra.
Quatro décadas depois, Benê, 48, é um dos principais porta-vozes dos defensores das armas do país. Bem relacionado com a bancada da bala, na semana passada esteve no Congresso, defendendo o decreto pró-armas do governo, que corre sério risco de ser derrubado.
Muito atuante nas redes sociais e amigo dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, não gosta de ser chamado de lobista, porque “sempre parece que tem um cifrão”. Prefere especialista.
Lobista ou especialista, ele comanda o Movimento Viva Brasil (MVB), ONG que criou em 2004 para dar assessoria aos defensores do “não” no referendo que tentou barrar a venda de armas, em 2005.
“Eu era o debatedor, o cara técnico”, afirmou à Folha em sua casa em Florianópolis, decorada com adesivos e gravuras alusivas a armas antigas e uma coleção de espingardas de chumbinho para a prática de tiro.
Na campanha do referendo, teve os primeiros contatos com os então deputados Bolsonaro e Onyx Lorenzoni. Venceram com 64% dos votos, mas Benê acabou pagando um preço pessoal por seu envolvimento com o tema.
Na época, ele dava aulas de informática no tradicional Colégio São Luís, de São Paulo, e o diretor veio dizer que seu posicionamento não era o mesmo dos jesuítas que comandavam a instituição. Acabou demitido.
Desde então, passou a se dedicar em tempo integral ao MVB, que comanda praticamente sozinho. Quando ouve que a entidade é uma versão brasileira da NRA (National Rifle Association), poderoso lobby pró-armas dos EUA, ri. “Legal, só me dá 8 milhões de associados e 6.000 empresas que colaboram”.
Bacharel em direito, Benê tentou ser delegado de polícia, mas desistiu. Enveredou pelos ramos da informática e do telemarketing. Nos anos 1990, infância da internet, começou a participar de grupos de emails de defensores de armas. “A gente caiu na internet por total ausência de espaço [na imprensa]”, diz ele, crítico ácido da mídia no Twitter, incluindo a Folha.
O MVB, diz Benê, financia-se com anualidade de R$ 100 paga por cerca de 2.000 associados. Também dá cursos de tiro e faz palestras sobre armas, ao custo de R$ 10 mil cada (preço negociável). Recebe ainda royalties pelo livro “Mentiram para Mim Sobre o Desarmamento”, lançado em 2015, que, segundo ele, vendeu 30 mil cópias.
Ao contrário do que se poderia imaginar, a vitória de Bolsonaro acabou reduzindo a receita de sua entidade, afirma.
“Nossa renda de doações despencou 40%, porque todo mundo acha que agora a questão está resolvida. Talvez eu devesse ter votado no [Guilherme] Boulos ou na Marina [Silva]”, brinca.
Benê afirma que não recebe dinheiro de empresas de armas nem de governos, embora já tenha recebido propostas para isso. “Quero poder chegar e falar: olha, isso aqui é uma bosta”.
Uma dessas situações ocorreu em janeiro, quando Bolsonaro baixou o primeiro decreto pró-armas, que ele considerou tímido, por basicamente apenas mudar algumas regras de registro de armas. Acabou batendo boca com Carlos Bolsonaro pelo Twitter.
Há cerca de um ano, Benê e a família trocaram São Paulo por Florianópolis. Como muitos paulistas, foram atrás de qualidade de vida da capital catarinense. No caso dele, também há a conveniência de ficar perto do Clube de Tiro .38, na cidade vizinha de São José. A ligação dele com o local, frequentado por Eduardo e Carlos Bolsonaro, é antiga, tanto que o endereço para correspondência do MVB é a sede do clube.
Mesmo em novo endereço, ele não desacelerou, especialmente no Twitter, onde tem 331 mil seguidores.
A tese central de Benê é que a posse de armas é mais um direito que uma questão de segurança pública. “Nunca falei que a criminalidade vai desabar quando liberar as armas. Não sei se isso vai acontecer, a discussão não é essa”, afirma.
O cidadão, diz o ativista, tem de poder se defender, seja de bandidos, seja do próprio Estado. “Se você acabar com todas as armas para a população, só o Estado as terá. O risco caso um dia tenhamos um governo ditatorial é muito grande, e isso acontece toda hora na América Latina”.
Segundo Renato Sérgio de Lima, defensor do desarmamento e diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Benê modulou seu discurso ao longo dos anos. “Ele reduziu a ênfase na questão da segurança, mais divisiva, e prefere o discurso da arma como direito, mais palatável”, afirma. Para Lima, ele é o típico polemista dos tempos atuais, relevante nas redes sociais e bem menos fora delas.
Uma prioridade de Benê é torpedear o elo entre aumento de armas e de mortes. A principal peça de resistência dos desarmamentistas é o Atlas da Violência, pesquisa anual feita pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP com base em estatísticas de homicídios.
Na edição deste ano, divulgada em 5 de junho, os autores apresentaram números mostrando que a partir de 2003, quando foi aprovado o Estatuto do Desarmamento, o crescimento das mortes por armas de fogo desacelerou, de uma média anual de 5,44% para 0,85%.
Para Benê, as conclusões são afetadas pelo viés pró-desarmamento dos pesquisadores. “Eles acham que foi o desarmamento e ponto final, deixam todas as outras variáveis de lado”, afirma. A principal, diz ele, é o efeito de políticas regionais em estados populosos como SP, RJ e MG, o que afeta o número geral.
“O Nordeste, que mais participou de campanhas de desarmamento voluntário e onde há menor número de armas registradas, foi onde a criminalidade mais cresceu”, declara.
Ele afirma que há indicações de que a maior presença de armas induz à queda na criminalidade, mas admite que os estudos são inconclusivos.
“Nos EUA, estados que liberaram o porte de armas quase que imediatamente tiveram uma queda no número de crimes violentos. O criminoso, em vez de roubar o carro quando você estiver parado no farol, vai preferir furtar quando você não estiver por perto”.
Outra certeza que tem é que “gun free zones”, ou seja, zonas livres de armas, como escolas, igrejas e centros comerciais, são “um convite para malucos”.
Para Benê, a epidemia de massacres nos EUA não tem relação com o acesso a armas. “Se tivesse, você teria esse tipo de coisa em outros países com muita arma”, diz, citando Canadá e Finlândia.
E qual a explicação? Sem grande convicção, ele teoriza: “É um problema cultural americano, quase uma coisa mitológica: ‘eu sou maluco, eu quero aparecer, eu vou matar um monte de gente’”, diz.
Assim que ocorre um massacre com armas de fogo, seja numa escola de Suzano (SP) ou numa mesquita da Nova Zelândia, ele se prepara para ser alvo de artilharia.
“A primeira coisa que faço é buscar informações. E cada vez mais eu vejo que não foge do script: arma ilegal, pessoa com problema mental, extremista e gun free zone”, afirma.
Passado o debate sobre o decreto, ele mira um objetivo maior: revogar o Estatuto e substituí-lo por uma legislação bem mais flexível de armas, quase sem restrições.
As únicas regras que propõe são idade mínima de 21 anos, limite de nove armas por pessoa e análise de perfil e antecedentes criminais.
“Defendo barreiras objetivas: tem histórico de violência? Fora. Problema psiquiátrico? Fora. Não sou um libertário”, diz.