Filme sobre o golpe de 64 diz que militares perderam a batalha das ideias
Não era exatamente a estreia de um blockbuster. Mas o lançamento do documentário “1964: O Brasil Entre Armas e Livros”, na noite de domingo (31), em São Paulo, empolgou a direita. Uma hora antes do início da projeção, uma fila enorme já se formava esperando a abertura da sala no complexo de cinemas do shopping Eldorado.
No “tapete vermelho” —que, felizmente para os organizadores, não tinha essa cor—, o youtuber Nando Moura (3,18 milhões de inscritos em seu canal) e um repórter do canal ultrabolsonarista Terça Livre entrevistavam personalidades do mundo conservador. Estiveram por lá, entre outros, o youtuber Bernardo Kuster, o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), o presidente do Instituto Mises Brasil, Helio Beltrão, além de diversos professores universitários.
O documentário é obra do Brasil Paralelo, misto de produtora e empresa baseada em Porto Alegre (RS) que tem se especializado na produção de vídeos sobre a história do Brasil, sempre com viés de direita.
Seus diretores são olavistas assumidos. Um deles, Henrique Zingano, louvou o filósofo Olavo de Carvalho antes da exibição, na sala lotada, dizendo que ele era o “maior produtor de ‘red pills’ do Brasil”. A referência é a uma cena do filme Matrix (1999), em que uma pílula vermelha é oferecida ao personagem Neo para despertar nele o conhecimento sobre os duros fatos do mundo real.
O filme levou quase dois anos para ser produzido e foi feito de maneira independente (veja o trailer). Em fevereiro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro causou certo frisson ao tuitar fazendo propaganda do documentário.
Os produtores apresentam uma versão “alternativa” sobre o golpe de 1964, que, segundo eles, é contaminada pela historiografia tradicional de esquerda. Não por outro motivo, a data escolhida para seu lançamento foi a do aniversário de 55 anos da derrubada de João Goulart pelos militares.
Houve eventos simultâneos em dez cidades, que transcorreram de forma tranquila. Em Belo Horizonte, a direção da sala de cinema contratada chegou a ameaçar cancelar a exibição após protestos nas redes sociais, mas acabou mantendo-a.
E o que ele mostra, afinal?
Estou longe de ser um especialista na arte cinematográfica, mas posso dizer que a película é tecnicamente bem-feita, com uso interessante de grafismos e boa qualidade de imagens.
Com duas horas de duração, o filme é um pouco cansativo em alguns trechos, e fica a sensação de que daria para enxugar bastante a avalanche de depoimentos que se sucedem. Entre os entrevistados estão jornalistas, historiadores e acadêmicos, no Brasil e no Leste Europeu. A trilha sonora marcial permanente no fundo, por vezes alta demais, dá um certo desespero.
Olavo de Carvalho, claro, está lá, e surpreendentemente comportado. Não solta palavrão uma única vez. O mais próximo disso é quando diz que os militares fizeram uma “cagada” de manter-se no poder tempo demais.
Esta é uma das surpresas do filme: Olavo diz com todas as letras que foi um “golpe”, e que depois houve um “golpe dentro do golpe”, referência ao endurecimento do regime em 1968.
A promessa de revelação de documentos inéditos do Instituto para o Estudo de Regimes Totalitários em Praga (República Tcheca) é um pouco frustrante. Não há muita coisa fundamentalmente nova em papéis mostrados de forma apressada, que corroboram o já conhecido interesse de serviços de inteligência do bloco soviético no Brasil, nos anos 1960.
Seria um tanto injusto dizer que o documentário defende a ditadura. Há algumas críticas aos exageros do regime militar e até referências à atuação de “psicopatas” que torturaram e mataram opositores.
O que o filme traz de mais polêmico é estabelecer uma equivalência entre os dois lados: militares e a direita de um lado, opositores e a esquerda de outro.
Isso fica claro desde a explicação sobre a origem do 31 de março de 1964, que teria sido uma reação legítima a um movimento acelerado de adesão de Goulart ao bloco soviético.
Na verdade, na visão do filme, a deriva esquerdista brasileira vinha de bem antes, do governo Juscelino Kubitschek, que entregou a construção de Brasília ao notório comunista Oscar Niemeyer. Como se não bastasse, seu sucessor, Jânio Quadros, condecorou o guerrilheiro Che Guevara. Jango, assim, apenas completaria o trabalho de entregar o Brasil aos braços da União Soviética, e precisava ser parado.
Ainda mais controverso, equaliza-se o jogo no nervo exposto das violações de direitos humanos. Sim, diz o filme, houve abusos do governo, mas que foram uma reação justificada à atividade terrorista de grupos armados. Em determinado momento, um entrevistado chega a classificar os confrontos de “guerra civil entre militares e comunistas”.
A película gasta mais tempo com a crítica a Carlos Marighella do que com o assassinato de Vladimir Herzog. A contabilidade de 434 mortos feita pela Comissão Nacional da Verdade é colocada em dúvida. A censura é relativizada e classificada como amadora e confusa.
No filme, como disse Olavo, os militares fizeram “cagada”, mas não da maneira como isso é tradicionalmente apresentado. Para a direita, pior que a questão dos direitos humanos foi a falta de preocupação com a batalha das ideias, vencida pela esquerda. Enquanto o aparato repressivo matava Herzog, Chico Buarque conquistava a juventude com suas composições sobre amor e liberdade.
No trecho final, o filme exala melancolia. O desgaste dos militares abriu caminho para a “Constituição Cidadã”, cristalizando em lei grande parte das teses pelas quais Goulart foi derrubado. Os derrotados de 1964 se vingaram em 1988.
Após a exibição, num rápido debate representantes da chamada “nova direita” ali presentes disseram que é prioridade recuperar terreno e vencer a batalha de ideias. Para isso, contam com o novo clima no país instaurado pela vitória de Jair Bolsonaro —que, aliás, não é mencionado nenhuma vez no filme.
O documentário agora deve fazer carreira em institutos e universidades (espero que sem tumultos). Também ficará disponível no YouTube.