Após levar ‘rasteira’ de sigla de Bolsonaro, Livres tenta se reerguer
Parecia um conto de fadas liberal.
Em fins de 2015, um grupo de ativistas, acadêmicos e políticos foi convidado a entrar em um partido àquela altura praticamente desconhecido e começou a transformá-lo em algo novo. Assumiram diretórios, fortaleceram as instâncias de formulação de programa de governo e pensaram que iam introduzir no cenário político brasileiro uma novidade: uma legenda 1oo% dedicada ao liberalismo, seja na economia, seja nos costumes e valores.
Em poucos meses, o grupo Livres havia conquistado 12 diretórios estaduais do PSL, partido que naquele momento não dizia muita coisa para o eleitorado além de ser mais uma agremiação fisiológica interessada apenas em vender fundo partidário e tempo de TV para a coligação que oferecesse mais.
Eis que então…
No final de 2017, um certo Jair Bolsonaro, que estava de malas prontas do PSC para o Patriota (ex-PEN) para disputar a Presidência, começou a mudar de ideia. E os rumores de que iria preferir o PSL começaram a se avolumar. No começo, parecia só boataria. “Chegamos a divulgar nota dizendo que Bolsonaro não viria ao PSL”, diz Paulo Gontijo, 37, que na época presidia o diretório fluminense do partido e hoje é o principal coordenador nacional do Livres.
Mas era verdade, e o resto é história. Citando diferenças insuperáveis com Bolsonaro, a turma do Livres saiu por uma porta enquanto o hoje presidente entrava por outra, trazendo a tiracolo seu círculo de apoiadores. Cerca de 5.000 pessoas do Livres se desligaram do PSL.
Foram enganados?, perguntei a Gontijo na semana passada. Ele balançou a cabeça afirmativamente. A traição, segundo ele, partiu de Luciano Bivar, que na época (como agora) presidia o PSL e havia sido o entusiasta da transformação da legenda em um movimento liberal. “Ele tinha um acordo com a gente e não cumpriu. Ficou mais preocupado com a cláusula de barreira na eleição”, diz.
Procurei Bivar para responder, mas ele não se manifestou.
O Livres agora tenta se reorganizar. Gontijo, empresário de comunicação no Rio com passagem como jornalista pelo saudoso Jornal dos Sports (aquele das folhas cor de rosa) chegou a São Paulo no início do ano e se instalou em um escritório na região da avenida Paulista para reestruturar o grupo.
Primeira lição aprendida: não têm a intenção de se transformar em um partido político. “Partido é caro, pesado, e nos tira liberdade de posicionamento”, diz ele.
Isso não quer dizer que o Livres esteja afastado do mundo partidário, ao contrário. O grupo conta com apoiadores em diversas legendas, como Novo, PPS, PHS, PSDB e Rede. Tem em seus quadros, por exemplo, o senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL), os deputados federais Marcelo Calero (PPS-RJ) e Tiago Mitraud (Novo-MG), além de deputados estaduais e vereadores em 5 estados. São 14 detentores de mandato, ao todo.
“Para 2019, a meta é aumentar filiados e aumentar os que têm mandato. Queremos ser referência de liberalismo por inteiro”, diz Gontijo.
Algumas estrelas de governos passados também compõem o movimento. Entre eles, Elena Landau, que foi diretora de privatizações do BNDES no governo Fernando Henrique, Ricardo Paes de Barros, considerado um dos pais do Bolsa Família, e Persio Arida, ex-presidente do Banco Central.
O Livres se define como um grupo “liberal-liberal”, em oposição a Bolsonaro, que seria, para eles, “liberal-conservador”. Explica-se: enquanto todos mais ou menos convergem na pauta econômica de redução do peso do Estado na economia, o Livres destoa do atual governo por defender direitos humanos, direitos dos homossexuais (com ênfase nos trans), descriminalização das drogas, fim do serviço militar obrigatório e voto facultativo.
Também são contra o Escola Sem Partido, embora reconheçam que a doutrinação esquerdista nas escolas é um problema real. No caso do aborto, não há consenso no grupo, porque ali se chocam dois direitos individuais, na visão do Livres: o da mulher e o do feto.
Têm ainda algumas pautas um tanto inusitadas, como a oposição à proibição de canudinhos de plástico (no lugar, defendem campanhas de conscientização).
“Estamos falando de criar uma cultura de liberdade. A esquerda sempre teve o mérito de ter uma identidade, ao contrário de nós”, diz Gontijo, que disputou uma vaga na Assembleia do Rio pelo PPS em 2018, mas não se elegeu.
“Por que Vargas Llosa, por exemplo, não é celebrado pelos liberais como a esquerda faz com suas referências intelectuais?”, pergunta, em referência ao peruano Nobel de Literatura.
O Livres é uma associação civil sem fins lucrativos e se financia por meio de mensalidade de seus cerca de 2.000 filiados (R$ 24,90) e de contribuições. Um doador expressivo é a Atlas, fundação baseada nos EUA que fomenta ideias liberais pelo mundo. Para 2019, o orçamento é de cerca de R$ 1,2 milhão.
E como fica a bigamia de políticos que ao mesmo tempo se dizem do Livres enquanto continuam ligados a partidos? As coisas não são excludentes, diz ele, embora seja inevitável que eventualmente ocorram ciumeira e mal-entendidos.
“A gente tenta qualificar o mandato, e não ser uma dor de cabeça para eles”, diz Gontijo. “Não queremos dirigir as carreiras de nossos associados”.
A atuação do Livre se dá pela organização de seminários, difusão de material teórico e compartilhamento de experiências de boa gestão. A exemplo de outros grupos recém-surgidos, são bastante atuantes on-line. Acabaram de pôr no ar, por exemplo, uma série sobre os 25 anos do Real, com depoimentos de protagonistas do plano que controlou a inflação.
Sobre o governo Bolsonaro, Gontijo diz que o grupo não guarda ressentimentos, e apoiará as teses que forem boas para o país, sobretudo na pauta econômica. “Mas temos muitas diferenças com o novo governo. Somos pelo gradualismo, pela convivência democrática”. Duas coisas que não são exatamente uma marca do novo presidente, para usar um eufemismo.