Como é formada a nova geração de liberais brasileiros

Na tarde do último sábado (16), numa sala de uma universidade privada na zona sul de São Paulo, 20 estudantes de pós-graduação debatiam teoria econômica até que um deles perguntou na lata: “O que é mais nefasto, imposto ou política monetária?”.

Em muitos ambiente de discussão acadêmica a questão soaria absurda, dado que taxação e juros são parte integral dos sistemas econômicos. Mas ali o professor aceitou-a sem problema, embora não tivesse uma resposta clara:

“Imposto é dinheiro que poderia ser usado de forma eficiente pelo cidadão e é alocado a um burocrata, que vai favorecer alguém do governo, investir numa fábrica desnecessária… Política monetária é a diluição de recursos pra todo mundo. Não sei dizer qual o pior. Prefere morrer enforcado ou afogado?˜.

A plateia riu.

Ali, eram todos austríacos, embora ninguém tivesse nascido no país europeu ou falasse português com sotaque. Ser “austríaco” é um conceito, que a audiência daquela aula, todos homens na faixa de 20 a 35 anos, repete com orgulho. Significa ser adepto das teses ultraliberais da Escola Austríaca, cujos principais cânones são Friedrich Hayek (1899-1992) e Ludwig von Mises (1881-1973).

Mises dá nome ao instituto que promove o curso, presidido por Hélio Beltrão, que foi executivo de diversas instituições financeiras, sendo a mais conhecida delas o Banco Garantia, onde trabalhou sob a batuta do hoje homem mais rico do Brasil, Jorge Paulo Lemann. Era Beltrão o professor que respondeu à provocação do estudante.

O Mises Brasil foi fundado em 2007 para difundir o liberalismo econômico e, até o ano passado, era pouco notado. Mas a chegada de Jair Bolsonaro ao governo e, sobretudo, a de Paulo Guedes ao Ministério da Economia, deu novo status ao instituto. “Nossa Kombi liberal cresceu”, festeja Beltrão. O Mises tem se consolidado como um celeiro de ideias para o novo governo.

Guedes, para ele, será o primeiro ministro da área realmente liberal da história do Brasil –os demais podiam até se sentir liberais, mas faziam concessões demais ao Estado, na forma de programas como renda mínima e aumento da regulação.

O Posto Ipiranga de Bolsonaro é um parceiro antigo do Mises, cuja influência está espalhada pelo novo governo. Já estiveram envolvidos com o instituto, entre outros, os deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Kim Kataguiri (DEM-SP) e Marcel van Hatten (Novo-RS), além de diversos integrantes de cargos de segundo e terceiro escalões. Quase toda a diretoria da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações) participou de cursos.

O Mises é um instituto de formação acadêmica. Possui uma editora especializada em publicar livros de autores da Escola Austríaca e promove diversas modalidades de cursos. Para os liberais mais jovens, na faixa dos 20 anos, organiza um acampamento de verão todos os anos no interior de São Paulo. Seu carro-chefe é a pós-graduação, que por enquanto é uma especialização, mas há planos de que se torne um mestrado no futuro.

Segundo Beltrão, havia uma carência de ideias liberais na academia, pois os cursos de economia, para ele, têm forte viés keynesiano. A referência é ao britânico John Maynard Keynes (1883-1946), defensor do conceito de demanda agregada, que influenciou a prática econômica do século 20 ao propor que, para um país sair de uma recessão, é preciso despejar recursos públicos na economia para reaquecê-la.

Para os austríacos do Mises, Keynes é um inimigo mortal. Chamar alguém de keynesiano é ofensa grave, quase como xingar a mãe.

Para provar o ponto, Beltrão exibiu, na aula que eu acompanhei, um divertido vídeo mostrando um duelo musical entre atores personificando Keynes e Hayek, cada um esgrimindo suas ideias à moda dos rappers americanos (recomendo muito, mesmo se você for iletrado no assunto, como eu).

A Escola Austríaca defende a menor presença possível do Estado na economia e acredita que as leis de mercado são soberanas. Rejeita subsídios, estímulos, política governamentais de crédito e tudo que se pareça com intromissão no curso natural do sistema capitalista. Muitos de seus adeptos são libertários, rejeitando o monopólio do governo sobre emissão e controle de moeda e qualquer tipo de regulação.

“O keynesiano acha que o cara que não gasta em tempos de crise é um especulador. Mas esse cara está conservando seu capital para ser usado em um momento melhor. Ele está aumentando a eficiência do modelo”, disse Beltrão aos alunos.

“Ele pode ser o empreendedor que vai comprar as empresas falidas”, complementou um aluno. “Exato”, respondeu Beltrão.

Os liberais admitem que perderam a batalha de ideias no século 20 e que Keynes foi bem mais influente para a prática econômica. O motivo é simples: quando a crise aperta, governos se sentem pressionados a fazer alguma coisa. E tome medidas artificiais de estímulo econômico para segurar empregos. “Os lobbies são poderosos. Depois vem a ressaca”, diz Beltrão.

Mas há mudanças no ar, diz ele. “A cada ano eu me surpreendo mais com a velocidade do crescimento desse negócio “. A chave é ganhar o debate na sociedade.

“É como um time de futebol. O goleiro deles é o Marx. A defesa são os caras que estão na academia, e a nossa era péssima, vazada, enquanto os beques marxistas são invioláveis. O meio campo são jornalistas, escritores, comediantes. Não tínhamos nada, zero. Vinha o Chico Buarque e driblava todo mundo. E lá na frente está o político, esperando a bola para fazer o gol. Mas ele precisa de meio de campo, não dá pra esperar lançamento direto do goleiro”.

Resumo da analogia: é preciso melhorar a difusão das ideias liberais, e os cursos do Mises têm esse propósito. Na aula que acompanhei, o debate era estimulado, e os alunos interrompiam o professor e o contestavam sem cerimônia.

O perfil dos estudantes é variado, e nem todos têm formação econômica. Guilherme Moretzsohn, 33, por exemplo, é graduado em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Guilherme Moretzsohn, estudante do curso do Mises Brasil (Fábio Zanini/Folhapress)

Envolveu-se com o movimento liberal em 2010 e hoje é um dos organizadores do Chopp sem Imposto, evento anual em que por um dia alguns bares fornecem a bebida sem cobrar o imposto no preço, gerando descontos expressivos. “A gente era considerado maluco”, diz ele, que vem de uma família com tendências esquerdistas. “Meu pai não é de esquerda, é pior, é keynesiano”.

Um dos mais jovens da turma, Estevam Herculano, 22, é analista de sistemas. “Sempre enxerguei uma hipocrisia nas ideias socialistas. A gente precisa trabalhar, construir patrimônio. Lucro e trabalho não são coisas ruins, ao contrário”, diz ele. Presbiteriano, pretende estudar para chegar a reverendo. “Vejo muitos pontos de contato entre as ideias liberais e a ética protestante”, afirma.

A aula termina com uma explicação pitoresca de como funciona a Teoria dos Ciclos Econômicos proposta pelos austríacos e hoje amplamente aceita mesmo entre os que não se definem como liberais. Em resumo, crédito fácil leva à criação de bolhas, que se sustentam por um tempo artificialmente, até o inevitável aperto, que leva à contração.

Na vida real, basta identificar alguns sinais para sabermos em que pontos estamos do ciclo, explicou Beltrão. Durante o boom, começam a aparecer bilionários em capas de revista (como Eike Batista), garotos de 20 e poucos anos se tornam “gestores” e surge uma “Brasil-mania” global (pense na capa da revista The Economist com o Cristo Redentor decolando).

Quando vem a recessão, todos aqueles bilionários quebram (Eike de novo), a violência urbana cresce e vem uma crise política (como o impeachment de  Dilma).

E o Brasil some das capas de revista.