Documentário quer discutir “mal-entendidos” sobre golpe de 64

Na semana passada, Eduardo Bolsonaro tuitou. Até aí, nenhuma novidade, os filhos do presidente parecem tuitar 24 horas por dia. Mas desta vez o conteúdo me chamou a atenção.

O mais votado deputado da história do Brasil compartilhou um vídeo que começava com uma cena escura que parecia saída do filme “Blade Runner”. Era de uma antiga “fábrica stalinista” na República Tcheca.

Depois vinham imagens de memoriais em prol das vítimas do comunismo, mescladas com cenas da nossa ditadura militar. Um narrador dizia que o regime de 1964 “remonta a narrativas sobre as quais se constroem as mitologias da política contemporânea”. “Golpe, contragolpe, revolução. Vamos fazer um mutirão pela verdade”, sugeriu um entrevistado não identificado.

São trechos do trailer do documentário “1964, o Brasil entre Armas e Livros”, com estreia prevista para 31 de março, aniversário do golpe. Produção e lançamento são obra do Brasil Paralelo, grupo gaúcho da nova direita surgida nos últimos anos. Para eles, há muito o que se rediscutir sobre o que se passou em 1964, e os conceitos de golpe, ditadura e repressão estão contaminados pela historiografia com viés esquerdista.

“Queremos esclarecer os maiores mal entendidos, onde houve erros, onde houve acertos. Tentar limpar essa historiografia”, diz Lucas Ferrugem, 26, um dos sócios do BP. Na miríade de start-ups de direita que pipocaram desde o impeachment de Dilma Rousseff, eles têm uma particularidade: não querem ser chamados de grupo, movimento, muito menos o amaldiçoado termo esquerdista ONG. Definem-se como uma empresa.

A especialidade deles é a produção de documentários. Já são 24, todos com a mesma temática: uma visão da história e da política brasileiras fortemente crítica à esquerda. A audiência varia de 200 mil a quase 2 milhões de visualizações no YouTube. Estão todos no site deles.

O filme sobre 1964, acreditam, tem potencial para causar barulho. Durante a produção, que já leva mais de um ano, foram a Praga, na República Tcheca, e vasculharam documentos do Centro de Arquivos do Bloco Soviético. Dizem ter encontrado novidades, mas não quiseram revelar antes da estreia.

“Tem recibo para jornalista brasileiro, capas de jornal, listas de agentes de partidos…”, diz Lucas. “Não posso dar spoiler. Mas tem bastante nome legal e bem conhecido”.

O núcleo original da Brasil Paralelo é formado por Lucas e mais três amigos, que frequentavam o curso de administração na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) de Porto Alegre. Nenhum deles se formou.

Em 2016, criaram o movimento (ops, empresa). A fervura do impeachment estava alta, e os amigos queriam organizar aquela energia dispersa. “Era uma questão clássica de uma crise econômica que impactou a classe média e fez com que ela se manifestasse, fosse às ruas. Mas estava faltando um conteúdo mais profundo”, diz o fundador.

Aulas em vídeo e documentários foram o veículo de escolha do Brasil Paralelo. No começo, meio na raça, pois ninguém era expert na área. Recorriam a tutoriais na internet, e os primeiros resultados eram assumidamente amadores. Mas a coisa foi se profissionalizando, e se os vídeos atuais não chegam a ter o padrão Globo de qualidade, já estão a anos luz da estética de diretório acadêmico.

Hoje, a empresa tem cerca de 20 funcionários, muitos com conhecimento da produção e edição de vídeos. O financiamento, afirmam, é totalmente autônomo, a partir de uma base de 20 mil sócios que pagam assinatura –a modalidade mais cara, dando acesso a todos os vídeos, sai por R$ 588 anuais. Não revelaram, no entanto, a receita anual da empresa.

O perfil dos empreendedores ativistas é o mix que hoje ocupa o manual do direitista de sucesso: liberal na economia, conservador nos costumes. Mas rejeitam o termo direitismo, que para eles é uma palavra antiquada.

“Direitista é um termo tão pobre… Está sendo usado para identificar pessoas que se cansaram de um regime de extrema esquerda que estava em vigor. Remete à Assembleia dos Estados Gerais da Revolução Francesa”, diz Lucas, que prefere se chamar de um “conservador liberal”. (A referência histórica é à Assembleia Nacional, que foi uma decorrência dos chamados “Estados Gerais” formados após a revolução, que reuniam clero, nobreza e cidadãos “comuns”).

Ele concorda que a crise do PT e da esquerda brasileira deu um impulso a movimentos como o seu. “Existia uma hegemonia cultural, acadêmica e midiática imposta com valores da esquerda. O cara que discordava desses valores se sentia um lobo solitário”, afirma.

Ao mesmo tempo, Lucas se exaltou quando provoquei se então o Brasil Paralelo deve um favor a Lula e Dilma Rousseff, por terem desacreditado a esquerda. “Pelo amor de Deus, não me fala que a esquerda me ajudou! A esquerda subiu a minha carga tributária, defende a CLT, fora os escândalos de corrupção.”

O documentário sobre 1964, com pouco mais de 1 hora de duração, está sendo finalizado. Terá pré-estreia em cinemas de algumas capitais e depois será aberto na internet. Apesar da propaganda gratuita feita pelo filho do presidente, eles dizem que não dão apoio automático ao capitão reformado. “Minha expectativa é que Bolsonaro se lembre das promessas que fez e de quem o elegeu e que saiba que o papel virtuoso de um governante hoje é se demover de poder, entregar poder. E isso é uma coisa difícil”.

Lucas diz não saber quanto custou o filme, mas provoca a esquerda. Diz que certamente foi menos do que produções como Marighella, de Wagner Moura, que teve orçamento de R$ 10 milhões.

E o Brasil Paralelo aceita o termo ditadura para o regime militar?, perguntei. “A gente vai deixar isso para o documentário, lá é a oportunidade para a gente explicar o conjunto do raciocínio. Posso te responder com toda a transparência depois, mas antes dele eu vou estar me precipitando”, respondeu Lucas.

E chamar o que houve em 1964 de golpe?, insisti. “Tem também uma discussão em cima disso, vai estar no documentário, não é tão claro assim”, disse ele. “Qualquer manifestação que eu faça aqui é leviana”, afirmou.